Coluna Asas #55 - A armadilha - (Eduardo Selga)

 



Em meu último artigo publicado neste espaço, intitulado “O Outro Brasil se Mostra Esteticamente”, terminei dizendo, a respeito da relação da engrenagem capitalista com a luta dos negros, dos LGBTQIA+ e das mulheres, que “[...] o transversal, a depender da habilidade de quem controla os cordões, é negociável, mantendo-se a essência fétida da dominação”, no sentido de que a luta de classes, a essência da dominação capitalista, se eclipsa diante disso.

Vou tentar expandir um pouco mais a questão, usando para isso a existência da indústria cultural e o conceito de espetacularização.

“Descoberta” após o fim da Segunda Grande Guerra, a indústria cultural foi de fato um achado para o sistema capitalista, pois modificou a relação que as pessoas tinham com as manifestações da estética artística, que passou a ser regida pela mesma lógica que nos faz, diante das muitas opções expostas na gôndola da mercearia, escolher esse produto ao invés daquele: utilidade.

Por causa disso, com a ascensão da nova fonte de lucro, leitores e plateia teatral, por exemplo, deixaram de ser encarados com a visão romântica e muito fincada na estética artística para serem, infelizmente, tratados como meros consumidores. O relevante deixou de ser a qualidade literária do livro ou musical do disco de vinil, e a importância se transferiu para o potencial de venda do produto que contém literatura ou música.

Não é a mesma coisa, pois há livros falsamente literários e, falando de décadas atrás, elepês e CDs com gravações de baixa qualidade artística. Importante ressaltar: a régua que uso não é o meu gosto pessoal, absolutamente irrelevante, e sim certos parâmetros que determinam se algo é ou não uma obra de arte.

Nessa transferência de valores, a apresentação visual ganhou mais valor do que tinha antes. A capa do romance, por exemplo, equivale à embalagem de macarrão: é preciso usar as cores adequadas em proporção idem para fisgar o leitor. É fácil constatar isso: basta pegar edições originais dos anos 30 e comparar com as atuais. A mudança das técnicas capistas não é apenas uma evolução do ponto de vista estético: atende ao imperativo da indústria cultural, especificamente das editoras, de embalar bem um conteúdo que nem sempre é de qualidade estética.

No entanto, essa modalidade de indústria não pode ser entendida apenas o trato das peças culturais como objetos: há um forte elemento ideológico em sua mecânica, e um dos modos como essa vertente se mostra é por meio da espetacularização, ou seja, o processo pelo qual o espetáculo se torna “[...] a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida – isto é, social – como simples aparência”, usando as palavras do teórico Guy Debord. Assim, o mecanismo edifica imagens falsas da realidade (que precisa ser obstinadamente encoberta ou colorizada) e para isso o papel da indústria cultural é considerável.

A partir de estereótipos criados pelo próprio capitalismo, como os de gênero e raça, por exemplo, trabalhos culturais reproduzem o sistema, e quanto mais espetacularizado isso se dá, mais “invisível” é a absorção da ideia transmitida, sobretudo em um mundo exausto, que anseia por porto seguros. Se eles inexistem no cotidiano, a ficção e a espetacularização os fornecem. A serviço de uma engrenagem maior, é claro, funcionando, guardadas as proporções devidas, como a religião, no sentido de fornecer lenitivos.

Ocorre que o capitalismo é feito de contradições, sem as quais ele não existe e, ao mesmo tempo, sua presença destrói o sistema aos poucos. O fenômeno da luta de classes, e com ele o racismo, a misoginia, e LGBTfobia e outros preconceitos, é resultado do embate de forças contrárias que atuam no interior do sistema. Para o capitalismo não é possível eliminar a luta de classes, pois isso significaria dar fim a ele mesmo, mas é possível negociar as tensões transversais.

Nesse sentido, a indústria cultural e a espetacularização se mostram fundamentais: o sistema “concede”, após décadas de pressão, alguma representatividade às camadas socialmente marginalizadas, mediante uma literatura espetacularizada, por exemplo, e isso funciona como válvula despressurizadora. A estratégia dá uma cara humana e democrática ao capitalismo, que ganha sobrevida.

Aí entra em jogo uma armadilha, que apenas alguns artistas percebem. É que a visibilidade para o “grande público” implica baixar o tom do discurso, porquanto as preferências estéticas do consumidor (volto a dizer, é assim que o leitor é visto) é em larga medida determinada pela ideia de “bom gosto”, que, por sua vez, é determinada pelo capitalismo. Assim, muitas vezes a “denúncia” de uma desigualdade social existente na trama de um romance ou conto carrega um contrapeso, de modo a tornar mais palatável.

Inserir-se no sistema tem esse preço. E quando a arte fala em representatividade, em larga medida está se falando no direito de os representados serem, também, explorados. Pagar o pedágio pode ser entendido como um papel cínico, ou como a necessária negociação entre camadas sociais quando o que se pretende é pôr algumas questões na mesa, mas não revolucionar a sociedade.    

  

Referência

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.


Imagem: Tumisu por Pixabay

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