Coluna Asas #51 - Muito mais fácil (Catarina Cunha)


Pegando carona no excelente artigo anterior, Coluna Asas #50: “A mágica do livro infantil em um caminho repleto de percalços”, de Bia Machado, quero falar sobre uma lembrança de muitos séculos passados, de quando eu ainda era bancária. 

Conversando com uma colega de trabalho, durante a dose cavalar de café que nos era estrategicamente disponibilizado, comentei de minha vontade de escrever um livro, mas que não sabia por onde começar. Ela, mãe de duas crianças, respondeu sem titubear: “ Comece com um livro para crianças. Eu tenho que ler todas as noites para os meus filhos, são livrinhos tão chatos que eles dormem logo, às vezes eu antes deles. E é muito mais fácil de escrever.”

Fiquei tão chocada com o “incentivo” literário que me engasguei com o café. Quando ela diz “tenho que ler” está claro que ela não gosta de ler, é um sacrifício imposto pela maternidade sonolenta. Leitura só a obrigatória, os chatos manuais de instruções bancárias e bulas de remédio. E para minha colega o “livrinho” não é cultura e nem o transporte para um cérebro criativo e sim um potente sonífero. Mas o que me fez engasgar foi a última frase: “E é muito mais fácil de escrever.”

Muito mais fácil para você, cara pálida, que só escreve recadinho para a família em  micro papéis coloridos colados na geladeira. Adultos criarem mundos  imagéticos, por meio da escrita, para seres puros e livres é tão fácil quanto um elefante enfiar a linha no buraco da agulha. 

Sintam como é difícil, nesses tempos sombrios em que atolamos no Covid19, nas comorbidades, ingerência, corrupção e luto escrever um livro infantil . Vou fazer aqui uma experiência exemplificativa.

“Era uma vez um bichinho bem pequeno, mas muito forte e valente. Era tão pequeno que viajou o mundo todo sem ser visto e sem pagar passagem. Assim como a gente, ele precisava se alimentar, crescer e ganhar muitos irmãozinhos cada vez mais fortes. Eles começaram pegando carona nas pessoas mais legais, que abriam as portas para eles com um sorriso. Esses bichinhos sabiam que não poderiam ficar muito tempo dentro dos corpos dos novos amiguinhos porque eles ficavam frios, duros e sumiam. Então partiram para outros corpos, muito mais jovens e fáceis de entrar porque estavam sempre juntos. Embora fossem chatos, dava para brincar dentro deles muito mais tempo. A vida estava muito boa até chagar uma bruxa muito má, chamada Vacina. Eu morri de medo porque cada vez a gente tinha menos casa para morar. Mas aí veio o reizinho da floresta encantada defender o nosso direito de existir e hoje podemos continuar nossa vida sem medo de ser feliz.”

Sabe o que é isto que você acabou de ler? Acha que é um conto infantil? Não é. Isto é um texto de extremo mau gosto, sem talento e sensibilidade. Não leia para seus filhos, sobrinhos e, muito menos,  para os netos. Escrever para crianças exige uma áurea de despertencimento. É imprescindível dominar os próprios traumas, feridas e raivas para ter esse potencial de pertencer ao mundo lúdico. 

Então, quando você comprar o próximo livro infantil, lembre-se de que naquelas poucas páginas há vários heróis, de extrema coragem e força: o escritor, o ilustrador, o editor, e o principal, o herói dos heróis: o pequeno leitor. 

Eu recomendo começar com “Zumi Barreshti”, texto de Paula Giannini, ilustrações de Fil Félix. Compre o livro em pré-venda.

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