Coluna Asas #72 - Encontro - (Giselle Fiorini Bohn)
Moro na Alemanha. A vida
expatriada, como muitos devem imaginar, traz muitas dores – saudades,
estranhamentos, duros aprendizados. Mas entre essas dores, tenho uma que me
aflige de modo especial - a incomunicabilidade.
Hoje, num dia de primavera aqui na Baviera, saí para caminhar ao redor do lago que fica perto de minha casa. Apesar de lindíssimo, é um local que só os residentes conhecem, e, como não somos muitos aqui no meu vilarejo, raramente vejo alguém. Por ali passeio sempre sem pressa, por vezes tiro fotos que se acumulam em meu celular, penso na vida, deixo-me encantar pela beleza do mundo enquanto me desencanto por seus rumos.
Mas hoje havia ali um carro à
entrada da trilha que leva ao lago, e, mais à frente, sentado em um velho banco
de madeira à margem, um homem muito idoso, sozinho. Passei ao largo; ele sequer
me notou. De canto de olho, porém, vi que ele chorava em silêncio, seus ombros
chacoalhando levemente com os soluços abafados pelo alto canto dos pássaros e o
coaxar dos sapos.
Segui em frente, com o coração
apertado.
Se estivesse em meu país,
funcionando em minha própria língua-mãe, e não neste idioma que não domino além
do essencial, teria me aproximado, com um sorriso solidário e uma oferta nos
lábios: o senhor quer conversar?
Talvez, ao fazer isso, eu me
tornasse inconveniente, invasiva, desrespeitosa até, em um momento de solitude
e pesar que não me pertence. Ainda assim, teria corrido esse risco; sei que às
vezes só o que precisamos é falar, e um estranho - que justamente por não nos
conhecer vem desarmado - pode ser nosso melhor ouvinte.
Mas o que isso tem a ver com
literatura? A mim, tudo. Esse falar, esse compartilhar, ainda que com um
estranho, é o que me move a escrever. Eu preciso falar. Tenho dúvidas, dores,
alegrias, histórias dentro de mim que preciso contar. E quando as conto, passo
a compreendê-las melhor, a organizar o que realmente sinto, tiro de mim pesos
mortos que arrastam meus passos sem eu sequer perceber. A leveza só se revela
ao final de cada página escrita.
Preciso escrever. E escrevo com a
urgência de alguém que precisa desabafar. Meu leitor é o estranho amigável que
surge, sorrindo, quando estou com os olhos perdidos à beira do lago, e que se
oferece para me ouvir.
É exatamente por isso que não
menosprezo a obra de ninguém. Sei que nem todos os autores são movidos por essa
minha necessidade de conexão. Deve haver tantos motivos para se escrever quanto
escritores, mas não importa. Escrever é, por princípio, uma tentativa de se criar
uma ponte entre duas mentes, dois espíritos. Pode-se criticar a beleza da
ponte, pode-se reclamar que ela tem falhas estruturais, pode-se até dizer que a
ponte não leva a lugar algum, mas não se pode negar que foi o desejo de comunicação
que a materializou.
Se eu pudesse escolher o que
quero atingir com a minha escrita, seria inspirar as pessoas a buscar essa
ponte, de qualquer um de seus lados. Seja como escritor ou como leitor, abrir-se
para um livro é permitir, ao mesmo tempo, um encontro inédito e familiar: com o
outro e consigo mesmo.
Eu quero ser essa pessoa que fala
e encontra ouvintes, e quero ser também aquela que se dispõe a ouvir. Por
vezes, existirão ruídos, algumas frases se perderão, pode haver mal-entendidos;
toda forma de comunicação tem seus riscos. Mas quando o encontro acontece, vale
a pena todo o esforço.
Era o que eu desejei fazer com o velhinho
sentado à beira da água. Queria ter lhe dado a chance de falar, de conectar-se,
ainda que com uma estranha como eu. Talvez ele tivesse recusado essa
oportunidade, talvez a tivesse tomado de braços abertos. Nunca vou saber, pois
não me aproximei e nada ofereci. Eu o observei, na volta de meu passeio,
caminhar lentamente, com a ajuda de uma bengala, de volta ao carro, e ir
embora.
Foi então minha vez de chorar.
Imagem: Foto do acervo da autora.
Eita! Como não se enocionar? Estarei sempre aqui, do outro lado da ponte. Parabéns pelo texto e pelos sentimentos que o concretizaram. <3
ResponderExcluirMuito obrigada! Um elogio seu é sempre um presente!
ExcluirBelo texto que retrata, além da escrita fluida e amigável, a alma generosa que a materializou. Um Viva à autora!
ResponderExcluirMuito obrigada! :)
ExcluirÓtima crônica, Gi. Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigada, amigo!
ExcluirQue beleza de crônica! Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigada! :)
ExcluirExcelente! Me fez lembrar de algo, mas foi como um pássaro que se assustou e fugiu.rs. Continue a criar essas pontes e a conectar-se com a Natureza, apreciar a beleza e receber sua Força.
ResponderExcluirMuito obrigada! Se lembrar, volte para me contar! :)
ResponderExcluirBela crónica, Giselle. Muito mais conseguida, penso, do que se tivesse havido comunicação entre vocês. Gostei muito.
ResponderExcluirMuito obrigada! :)
ExcluirAlém de me conectar com a beleza e fluidez da sua escrita, o fiz também com a situação. Vivo isso demais da conta. Também não falo o inglês mais do que o necessário pra sobreviver. Morro de medo da minha vizinha vir um dia me pedir um cadinho de açúcar (kkkk). Parabéns. Voce sempre escreve com muita emoção. Luciana Merley.
ResponderExcluirMuito obrigada, querida! Quem vive isso na pele sente diferente, né? Feliz com sua leitura e retorno! :)
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSou fã da sua pessoa, do seu cérebro, do seu coração, da sua escrita, da sua timidez e da coragem que Deus te concede quando os seus dedos tocam o teclado ❤️ Te amo e torço pra você ser feliz, minha amiga! Um beijo grande, Valentina
ResponderExcluirAh, muito obrigada, minha querida! Também sou sua fã, você sabe! Quando eu crescer, quero ser igual a você! :) Um beijo!
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