Coluna Asas #33 - Entre o sim e o não, o perigoso caminho do ego - (Evelyn Postali)



Esses dias li um artigo longo cujo título dizia: ‘Os erros de português dos escritores’¹. 

A frase de início era do livro Consolação às Tribulações de Israel (1553), de Samuel Usque, escritor judaico-português autor dessa única obra que dizia: “Escrevo na língua em que mamei. E vou escrever nela até ao fim. Quem inventa o português sou eu. Que ele seja impresso como eu o entrego. Podem achar heterodoxo, não me interessa. Quero assim e acabou-se. Eles já sabem isso.”


Entre a frase e o conteúdo do artigo, pus-me a pensar sobre a possibilidade de haver certa arrogância na ação de alguns escritores ao construírem seus textos sem importar-se com a norma culta, a linguagem-padrão do país, e/ou com a revisão ortográfica, gramatical, crítica, sequer enquanto constroem, tampouco depois de finalizarem a obra. Afinal, revisores textuais e críticos literários são os sujeitos que conhecem a língua tão bem que detectam se o que foi escrito está "entendível" para o leitor ou não.

Então, aquele meu diabinho sentado sobre os livros sobressaltou-se.

― Arrogância ou não, essa questão nem precisa de reflexão. Você pode escrever do jeito que quiser. Você não é obrigada a seguir a norma culta. Tudo o que você precisa é escrever. Deixe a norma culta para os clássicos, para os tradicionais, para os cânones, para os chatos. São eles que odeiam os advérbios, os verbos fracos; são os que usam vírgulas demais, frases curtas, travessões, hifens e o cara*** a quatro.

― De jeito algum! ― disse o anjinho, levantando em sobressalto do meu ombro. ―Como você quer ter seu texto lido se ele está travado pela estrutura que usou ou pela repetição de ideias e palavras? Não preciso lembrar você que a leitura se complica e o entendimento é dificultado pela maneira como você constrói cada uma das frases.

 ―Nada disso! ― contestou o diabinho, caminhando pela mesa. ― Você não deve se importar com o leitor e, sim, com o conteúdo da sua história. É isso que conta mais. Não fique ligada nos pormenores.

― Mas não funciona comigo. Determinadas coisas são aceitáveis. Outras... ― agarrei as duas criaturas e fechei-as na caixa das bugigangas.

E é exatamente esse o ponto. O que é aceitável e o que não é? Nessa guerra entre a norma culta e o coloquial, ou o regional, existe o caminho do meio ou o caminho do ego? Se existe uma balança, como identificar os pesos e as medidas? Depende do quê? Como e quando deixar de lado a norma culta? Como subverter sem comprometer o entendimento?

Embora exista Saramago subversivo consciente de que a língua tem o ritmo da oralidade, escrevendo de forma não-linear e misturando narrador com personagens em um contexto crítico social conferindo ao texto extensos parágrafos sem importar-se com pontos ou vírgulas ou travessões existem escritores que, não conhecendo a própria língua e a riqueza lexical e os ritmos peculiares de cada grupamento social, almejam imprimir de qualquer jeito, em sua escrita, algo revolucionário, inovador. A desordem de Saramago não pode ser copiada porque é única. Sua linguagem é única e intransferível e por mais que se queira dar forma peculiar a um texto, ou a todos os escritos construídos, há que se esmiuçar a norma culta e escrever e escrever e escrever até o ponto de encontrar a linha que amarra a forma narrativa com a vivência.

Eu sou muito chata com a escrita. Gosto da norma culta porque talvez leia livros cuja grafia só destoe nas falas de personagens, quando se estampa, nelas, as questões da origem dos sujeitos, do lugar, das falas de um determinado lugar ou povo.

É natural e aceitável um autor escrever de forma a apresentar o lugar onde vive, deixar à mostra as expressões idiomáticas, retratando traços culturais de um grupo humano ou lugar. Isso, no meu entendimento, valoriza e enriquece a escrita. Eu, como leitora, gosto de conhecer os traços peculiares das falas de lugares onde nunca estive. E é inadmissível que, em um país enorme territorialmente, se valorize apenas narrativas de determinado lugar, ou se exclua do texto expressões próprias do lugar do autor. Avaliações valorativas ou depreciativas tendem a acontecer na crítica literária – sem querer levantar a treta e já levantando.

Deixe-me complementar: um texto com linguagem mais urbana, vamos dizer assim, possui algumas expressões específicas, especialmente se o autor faz parte daquele cotidiano. Isso, porém, não elimina o fato de que o autor precisa se fazer entender. Só assim existirá envolvimento entre o leitor e texto. Portanto, escritores necessitam da compreensão da estrutura da língua na qual escrevem para construírem narrativas dinâmicas, reflexivas, sem entraves ou problemas de entendimento semântico e pragmático.

Um texto, curto ou longo, cujo autor não domina a língua, a norma culta, ou não conhece as estruturas textuais e suas dinâmicas, está fadado ao esquecimento. Um texto recheado de erros, de vícios de linguagem e de ideias repetidas é desanimador. Confessa, vai. Eu abandono a leitura por completo. E você?



Notas:

1. https://ncultura.pt/os-erros-de-portugues-dos-escritores/

Sugestões de leitura:

Saramago, o escritor que brinca com a pontuação. https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/saramago-o-escritor-que-brinca-com-a-pontuacao/1691

Regionalismo e variação linguística. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0020-38742019000100063

Expressões idiomáticas na literatura em Língua Portuguesa. https://www.academia.edu/8021796/Express%C3%B5es_idiom%C3%A1ticas_na_literatura_em_L%C3%ADngua_Portuguesa

Expressões idiomáticas na obra ‘Vidas Secas’.

https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:1ZqIrzyT0qAJ:https://www.revista.ueg.br/index.php/icone/article/view/6439/4755+&cd=6&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br

Gírias. https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/girias.htm

Observações sobre as expressões idiomáticas na literatura: o caso de Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. https://docplayer.com.br/137640316-Observacoes-sobre-as-expressoes-idiomaticas-na-literatura-o-caso-de-incidente-em-antares-de-erico-verissimo.html

Preconceito linguístico. https://professorjailton.com.br/novo/biblioteca/preconceito_linguistico_marcos_bagno.pdf

Senhor norma culta. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/senhor-norma-culta/

As ‘pérolas’ de Paulo Coelho. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/as-perolas-de-paulo-coelho/


Sobre a imagem: The Librarian – Giuseppe Arcimboldo (1533 - 1593) Pintada em 1562.

Public Domain

File:Bibliotekarien konserverad - Skoklosters slott - 97136.tif

Created: 1562date QS:P571,+1562-00-00T00:00:00Z/9

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bibliotekarien_konserverad_-_Skoklosters_slott_-_97136.tif


Comentários

  1. Oi, Evelyn!! Muito bom seu texto e a questão levantada. Gosto daquela ideia que diz algo como "o Picasso só conseguiu chegar no cubismo porque ele tinha alcançado as belas artes". Ideias como a que é preciso saber construir para poder desconstruir. E acho que é um pouco por aí.

    O autor de hoje é responsável e lúdico naquilo que faz e precisa ter a ideia do alcance que seu texto pode ou não ter conforme suas escolhas. Afinal de contas, pode se escrever da maneira que for, mas com um custo, claro. Mas, pra mim, acredito que há um abismo entre o autor que consegue escrever "mal" ou inventar loucuras no português porque tem domínio no que faz e, sendo assim, pode escolher como quer dar forma às suas ideias, daquele que simplesmente não sabe e escreve mal por ter limitações na escrita. E é extremamente difícil chegar nesse nível, as vezes até mesmo de ser simples e sucinto porque entende tanto daquilo que faz que, em poucas palavras, já passa toda a sua mensagem.

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