Coluna Asas #17 - Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus (Renata Rothstein)

 


No meu primeiro artigo na Coluna Asas falei sobre o se tornar e ser leitor, normalmente algo que é estimulado na infância e adolescência, tanto por meio de presentes que ganhamos e tornam-se inesquecíveis (presentes para sempre), ou mesmo pela obrigatoriedade de leitura para as provas de Língua Portuguesa e Literatura, no Ensino Fundamental e Médio.

Bom, vou deixar esse assunto para outra ocasião, mas é fato: infelizmente quase sempre essa abordagem literária não alcança, de forma acertada, o seu alvo, ou seja, a formação de leitores pensantes e críticos que poderão alcançar um nível não só de conhecimento, mas de empoderamento, principalmente em tempos tão difíceis como estes que temos vivido.
Em tempos de #blacklivesmatter, #diganãoaoestupro, #desigualdadesocial, mais do que nunca é necessário pensar no jovem, e no material a que esse jovem em formação tem acesso, enquanto objeto e objetivo dos temas, “hot trends” de todas as redes sociais.
O problema é a falta de informações realmente apropriadas, ou corretas, nas chamadas mídias. Há muita informação, excessiva até, passada de um modo quase sempre distorcido, modificado, as chamadas #fakes, que são só, e somente, um desserviço para o trabalho que é realmente formar um cidadão pensante.
Pensei bastante e hoje resolvo trazer, mais uma vez, a questão da vida mais que real, a vida à margem, o misto de racismo, pobreza, desigualdade social e exploração – falo de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Publicado em 1960, um livro-diário que é um verdadeiro soco no estômago de uma sociedade fotografada e editada, uma “geração filtro” mesmo.
Saio do universo quase de sonho, ao menos na intenção de Pollyanna, e caio na realidade dura e crua, com o livro/diário Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus.
Negra, mãe solteira, mulher, favelada, sem estudo. 
Brasileira.
Escritora.
Bem, li Quarto de Despejo há uns vinte anos, e acredito que a leitura é, até hoje, um norte para o que penso e para o que vivo e para o que escrevo, mesmo que inconscientemente.
Lembrando que Quarto de Despejo é leitura essencial para quem vai fazer o Enem, para qualquer vestibular, concurso, enfim, volto a repetir, para quem quer realmente dizer black lives matter, entendendo o porquê dessa frase, e como utilizá-la coerentemente.
Ler Quarto de Despejo é sentir na alma a realidade dura de uma mulher na década de 1950, mãe solteira, negra, vivenciando a dor e a fome, em meio aos imensuráveis sofrimentos inerentes ao ambiente e condição impostos a ela, Carolina, aos seus três filhos, e aos filhos e de outras mulheres da comunidade em que (sobre)vive, no Canindé, Zona Norte de São Paulo.
Carolina não tinha estudo formal, mas era altamente politizada e dona de um esclarecimento sócio-moral que são, e serão, acredito, sempre atuais.
Penso na frase de Carolina que diz que “...O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”
Acho de uma força e urgência muito e sempre atual, essa frase.
Quarto de Despejo traz o dia a dia de uma mulher negra, favelada, independente, catadora de papel, ESCRITORA, que viveu no século XX, que pouco estudou, que conseguiu no final da vida um lugar um pouco mais digno para viver, um lugar, talvez, onde não se sentisse, como em determinado momento ela mesma diz – um “despejo”. O despejo que é a favela, a comunidade, aquele local onde são despejados aqueles que não são, digamos, agradáveis às vistas da sociedade.
É um livro que recomendo muito, tanto pela questão social, sempre necessária, quanto pela minha vivência pessoal e impressão que esse livro causou em mim, e que pode e deve causar, ainda que dolorosamente, em todos, principalmente nas gerações que vêm questionando mais, e lutando efetivamente por mudanças, que vêm, ainda que em passos de tartaruga.
Pensar a vida, olhar a vida além daquele belo filtro das redes sociais, acordar, principalmente em época de eleição, fica hoje minha recomendação de leitura e algumas considerações sobre Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Esperando, com fé, que nosso Brasil deixe de ser, um dia, um verdadeiro quarto de despejo.







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