Coluna Asas #73 - (Des)medida - (Bruno de Andrade)
Como se frita um ovo?
Eu devia ter uns seis anos — tinha
mais, certamente, mas a história fica menos vergonhosa se eu diminuir a idade —
e me encontrava numa situação crítica: sozinho em casa e faminto como apenas as
crianças conseguem ficar. O socorro demoraria cerca de meia hora, o que me dava
a certeza de que não chegariam antes de eu me tornar dublê de arqui-inimigo do
He-Man.
Ok, vamos por partes.
Ingredientes.
Um ovo. Vá até a geladeira e
pegue um ovo. Essa parte parecia razoavelmente simples, embora quebrá-lo e
colocar seu conteúdo na frigideira exigia alguma espécie de milenar habilidade samurai
que eu sabia não possuir. O que mais? Margarina e sal.
Margarina. E sal.
E aí começaram meus problemas.
Nunca compreendi a intricada e
misteriosa alquimia que os outros chamam de culinária. Aos seis — talvez sete
—, estava convencido de que meus pais dominavam alguma obscura magia ancestral
que os permitia pegar ingredientes sem utilizar nenhuma medida aparente e
jogá-los na panela em suas exatas quantidades necessárias. Sem esses místicos
segredos, eu estava perdido.
Quanto de margarina? Quanto de
sal?
Mas a ignorância não intimida uma
criança. Sobretudo uma criança faminta. Usei todo o meu saber infantil para
encontrar uma lógica irrefutável: é só colocar muito, assim não há risco de
faltar!
E então vi nascer diante dos meus
olhos uma nova fórmula alquímica: uma amarelada e nada apetitosa sopa salgada
de margarina. Com um ovo boiando no meio. Ao menos tinha um ovo.
O bom senso dizia para eu não
engolir aquela salmoura gordurosa. Mas não dá pra ter bom senso aos sete — ok,
ok, oito.
Foi minha primeira experiência na
cozinha. E a culpo por toda uma vida de inaptidão gastronômica. O que eu não
imaginava é que, mesmo tendo a prudência de me manter longe do fogão, eu ainda
faria muita sopa salgada de margarina na vida. E provaria outras receitas tão
pavorosas quanto, vindas de chefs tão desastrados quanto eu.
Porque a lógica do bota
mais pra não faltar se expande por várias searas. Sobretudo a artística. E
tome filme de ação com tantas explosões que quando as coisas estão inteiras na
tela parece falha na projeção, músicas em que mal se distingue algum
instrumento no meio de inúmeros efeitos eletrônicos, fotos de seres humanos que
lembram bonecos de cera após um tratamento exagerado na edição, jogos em que
pipocam tanta coisa na tela que parecem mais um esforço para causar uma
convulsão nos jogadores.
E a literatura... ah, a
literatura! Já li obras que poderiam vir embaladas num belo potão de margarina.
Metáforas pulando para todo lado, analogias em cima de analogias que já não
pareciam mais análogas a nada, adjetivos tão carregados que precisavam eles
mesmos serem adjetivados, figuras de linguagem completamente desfiguradas em
meio a tantos floreios e firulas. Terminava a leitura sentindo os dedos
engordurados de folhear as páginas e a garganta travando de tanto sal engolido.
Definitivamente, a falta de bom
senso não ataca apenas famintos garotos de oito anos. Ou nove... ou dez. Talvez
uns doze. Não é mais relevante.
Não posso dizer que eu mesmo
escape da armadilha da fartura — talvez esteja errando a mão agora mesmo
enquanto escrevo este texto. Mas tenho tentado equilibrar melhor os temperos e
condimentos da minha escrita para não transformar o leitor numa mosca lutando
para escapar da minha famigerada sopa indigesta.
Tampouco compro a tese de que
menos é, necessariamente, mais. Às vezes menos é só sem graça mesmo. E todos
nós queremos um fast food de vez em quando.
Porque escrever também é uma
alquimia miserável. É preciso ter a intuição que meus pais tinham ao jogarem os
ingredientes na panela. E nem adianta tentar seguir as receitas que tanto
vendem por aí: seu prato nunca fica igual àquele da foto. Quanto mais
formulaica a escrita, mais ela se aproxima de uma sopa salgada de margarina. E
o leitor percebe. E faz cara feia.
Assim como na culinária, o melhor
é experimentar, descobrir novos sabores, tentar novas misturas. Eventualmente
dá certo, eventualmente botamos fogo na cozinha. Tudo faz parte do prazer de
inventar uma nova receita.
O problema mesmo é quando bate a
fome. Aí volto à minha indagação inicial:
Como diabos mesmo se frita um
ovo?
Ah, mais uma crônica com a marca do Bruno de Andrade: começa com uma história qualquer sobre a vida e quando a gente pensa "onde vai dar isso?", tcharã: uma reflexão brilhante sobre a arte, em especial a literatura! Muito bom! Queremos mais! ;)
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