Coluna Asas #71 - Transformações na cultura brasileira - (Eduardo Selga)
A cultura brasileira, em suas diversas dimensões, é fortemente influenciada pela oralidade. Tal característica vale também para a literatura, que é a manipulação da palavra com intenções estéticas, revelando, dentre outros aspectos, o quanto nossa sociedade valoriza essa forma de expressão. Como regra social, falamos muito, escrevemos pouco e mal. Tal processo é perceptível desde os primeiros anos da escola, quando a língua portuguesa não é devidamente mostrada como elemento da cultura da qual o aluno participa, e sim como ferramenta de transmissão de informações, apenas. É pouco, convenhamos. Somos criaturas estéticas (não digo sermos todos artistas), além de necessitarmos, por óbvio, do elemento prático do ato comunicativo.
Não é pecado a presença da oralidade na cultura. Com efeito, uma coisa e outra são inevitavelmente conexas. Entretanto, há um dado que precisa ser considerado por agir no sentido de amofinar a cultura brasileira e torná-la ainda mais permeável à influência de outras culturas. Refiro-me a um fenômeno multifacetado, mas que carrega fortíssima camada ideológica: a controversa pós-modernidade ou, como prefere Bauman, modernidade líquida, processo que afeta a palavra e a linguagem de maneira muito contundente.
A pós-modernidade, conceito meio desaparecido dos ambientes os quais ele costumava frequentar amiúde, atua no sentido da reificação das pessoas, sentimentos e tudo o mais que for subjetivo ou abrigar alguma dimensão de subjetividade. Por essa estratégia, levada a efeito sobretudo pela indústria cultural e pela mídia, como canta Rita Lee, “tudo vira bosta”.
Como nesse verso, a sutileza é vilipendiada, pois tudo é jogado num grande caldeirão em alta temperatura (o cotidiano frenético das pessoas no capitalismo, ao menos antes da pandemia) e transformado em massa informe. Quem a bruxa por trás de tudo, a mover tranquilamente e em círculos a colher de pau, ao mesmo tempo em que agita a foice? Na verdade, é um bruxo: Sua Majestade, o Capital, ao seu dispor.
A batedeira sociocultural que é a pós-modernidade comprime o significado de tudo (e nesse sentido é um fenômeno), principalmente o das palavras, na medida em que é por intermédio delas que as coisas, de fato, são. Sem elas, a existência é um cadáver rígido.
No Brasil, podemos verificar o efeito da moenda no uso do léxico. Ocorre um apequenamento, uma restrição que atinge o uso simbólico da palavra, o sentido conotativo. É claro, outras razões existem para tal, a exemplo do abandono da educação pelas autoridades e, como dito no início, a sobrevalorização da oralidade, um dado que é histórico e fundamente do Brasil. Entretanto, a pós-modernidade precisa desse empobrecimento, pois ela aprecia o demasiado simplório, muitas vezes confundido com o simples.
Não por acaso, leitores reclamarem de algumas “palavras difíceis” que há poucos anos não eram assim consideradas é fato corriqueiro. Nem me refiro a termos quase defuntos como “mormente”, muito usada na literatura do século XIX e início do XX: falo de seu sinônimo, “sobretudo” — há quem não consiga decifrar de imediato a palavra no texto, pois só a conhece como sinônimo de casaco.
Nesse ritmo, pode-se atingir um nível nos textos literários, ou pretensamente assim denominados, em que escrever-se-á exclusivamente como se fala. Isso é ruim? Do ponto de vista estético, não necessariamente, mas se considerarmos que o artesanato das palavras pode ser tanto mais rico quanto maior for a diversidade de matérias-primas, sim. Afinal, é um fator limitante.
Poucas palavras, parcos sentidos. Ou seja, uma grande sabotagem com a realidade, repleta deles. Portanto, enxergar apenas alguns sentidos equivale a um tipo de cegueira, campo aberto ao fanatismo. E aí, uma encruzilhada: com uma miríade de sentidos e raras palavras, abusamos dos neologismos e combinações semânticas estranhas, dando azo a vocábulos que quase parecem fazer parte da novilíngua de George Orwell, como “buscativa” e “carentena” (a carência emocional decorrente da quarentena na pandemia). Por vezes o uso do recurso é necessário, frente a uma realidade ainda não coberta pelas palavras, a exemplo de “feminicídio”, que designa o assassinato praticado contra a mulher pelo fato de ser mulher, situação frente à qual “homicídio” não era bastante, mas, muitas vezes, esse fenômeno é resultado do achatamento semântico promovido pela pós-modernidade.
Dentro desse mecanismo do sentido, no âmbito da pós-modernidade, também há outro, também natural da língua: a redesignação semântica. Bom exemplo disso é “comunidade”, a partir de determinado momento substituindo “favela” devido ao peso negativo do último vocábulo. Como se, no caso específico em questão, ao alterar o significante acontecesse o mesmo com o significado. Uma parte dele, a que habita o imaginário popular, talvez, mas não todo ele. Outro bom exemplo é “rachadinha”, que encobre o peso da palavra “corrupção”, que parece ser válida apenas se usada contra determinado grupo político-ideológico brasileiro.
É bom lembrar, em tempos de pós-verdade, que a intenção do idioma criado por Orwell em 1984, no âmbito do romance, era reduzir o horizonte do pensamento, de modo que as palavras não traduzissem exatamente o factual.
Também é bom lembrar que faz parte da lógica de regimes autoritários a valorização da imagem em detrimento da palavra para outorgar sentido à realidade. Então, considerando que as palavras, assim como a educação escolar, têm grande potencial de rebeldia a depender de como ela se dá, faz-se necessário controlá-las e substitui-las, tanto quanto possível, pela imagem. É a velha e falaciosa máxima de que “uma imagem fala mais do que mil palavras”. Falaciosa porque uma e outra atuam em campos distintos na percepção humana, não há que se falar em superioridade desta ou daquela: são complementares entre si.
Talvez esse período chamado de pós-modernidade ou modernidade líquida esteja em seus estertores. A pandemia pode funcionar como travessia para outro momento, que ainda precisa ser construído. E aqui não falo necessariamente que haverá a superação do capitalismo — embora seja meu desejo — pois esse novo momento histórico pode interessar muito ao atual sistema socioeconômico, que possui grande capacidade de se recompor — e sempre mostrar uma face pior que a versão anterior.
Há muitas e distintas forças atuando nesse caminho, mas ainda não se notam seus efeitos no cotidiano. Decerto não será um retorno ao período anterior à pós-modernidade, e sim o surgimento de algo novo. Profundo — o que não significa necessariamente positivo — em relação a muitos aspectos humanos. Dentre eles, a linguagem e, portanto, a literatura enquanto arte que, é possível, seja ainda mais oralizada. A ponto de o vocábulo “literatura” não mais caber.
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