Coluna Asas #69 - 18 parágrafos sobre Ulisses, de James Joyce - (Fabio Shiva)

 


1)   Hoje é um dia especial: terminei de ler “Ulisses”!!! Viva viva!!! Que dizer desse livro que eu achei chatíssimo até a metade (por volta da página 400), para então começar a gostar mais e mais e terminar achando uma obra linda, genial e muuuito louca???


2)  Para escapar de fazer uma resenha interminável, me proponho o desafio de escrever somente dezoito tópicos, um para cada capítulo do livro, cada qual correspondendo a um episódio da “Odisseia” de Homero (Ulisses é o nome latino para Odisseu, originado na palavra grega para “guardar ressentimento”).

3)  Nessa obra Joyce se propõe a atingir o mais alto anseio da literatura, que é expressar no romance a totalidade da vida. Mas a complexidade cada vez maior da vida moderna (início do século XX) só pode ser retratada de fato caso o romance se reinvente, extrapole os limites, transcenda as barreiras. E é bem isso o que “Ulisses” faz.

4)  A história toda acontece em um único dia, que traz Leopold Bloom (Ulisses) em suas peregrinações pela cidade de Dublin. Stephen Dedalus, o jovem artista, é Telêmaco, e Molly Bloom, a esposa adúltera, é Penélope.

5)  Cada um dos dezoito capítulos é escrito em um estilo único e totalmente diferente dos demais. São quase dezoito obras diferentes aglutinadas no mesmo livro.

6)  Coisa surpreendente: “Ulisses” tem algumas partes muito engraçadas! Rachei o bico de dar risada em várias cenas, com destaque para o invento da obramaravilha, uma espécie de apito (que deve ser introduzido pela ponta redonda) para descongestionar os gases intestinais de cavalheiros e damas constipados. A suprema invenção do século XX!

7)  Outra constatação surpreendente: a obra é realmente revolucionária e genial, mas creio que alcançou tamanha repercussão mesmo foi pelo tanto de putaria: como tem sacanagem nesse Ulisses! Não causa surpresa o livro ter ficado proibido durante 11 anos nos Estados Unidos.

8) E aí é que está a fórmula explosiva: uma linguagem inovadora, uma estrutura intelectualmente desafiadora e, de quebra, a transgressão dos valores morais vigentes, nas muitas referências explícitas e até grosseiras ao sexo.

9) O que leva à reflexão: a literatura parece ter perdido a capacidade de chocar. Não dá para imaginar um livro hoje sendo proibido por ofender “a moral e os bons costumes”. Vitória da liberdade de expressão ou sinal de decadência da civilização? Você decide.

10)O que leva ao questionamento: por que hoje em dia não temos escritores como James Joyce? Corajosos, inventivos, audaciosamente indo onde a literatura jamais esteve? Os escritores do século XX parecem muito mais “avançados” que os atuais. Será que tudo já foi inventado e nada mais resta por inovar? O futuro dirá.

11)Dizem que por conta de suas invenções linguísticas “Ulisses” é mais fácil de ler no original que traduzido. A edição que li foi com a tradução pioneira de Antonio Houaiss. Bem, só posso dizer que não concebo o texto em inglês sendo mais difícil de ler que essa tradução abençoada do Houaiss!!! Parece que o tradutor quis dar conta de todas as possibilidades semânticas, e o resultado foi que o texto em português ficou bem mais erudito e intelectualizado que o original (é o que comentam pela internet). Sorte de quem for ler o livro agora, que já estão disponíveis duas outras traduções em português, e mais focadas na linguagem cotidiana.

12)Uma das partes que mais gostei é o capítulo que corresponde ao palácio de Circe, quando Bloom e o jovem Dedalus visitam um bordel pra lá de animado. O estilo da narrativa é o de uma peça de teatro onde o autor e todos os personagens ingeriram doses maciças de LSD. Lisergia pura!

13)Outro trecho marcante é o capítulo final, com o monólogo da senhora Bloom. São 50 páginas sem uma única vírgula ou ponto, na mais contundente expressão literária do “fluxo de consciência”, com a representação do fluir incessante dos pensamentos do personagem. Podemos dizer que Saramago, em comparação, foi até bem conservador ao inventar o seu estilo próprio de escrever... E Joyce, de brinde, ainda criou uma das mais marcantes figuras femininas da literatura: Molly Bloom.

14)Tudo considerado, apesar de “Ulisses” ser considerada uma obra de estrutura matematicamente perfeita, penso que o livro seria mais gostoso de ler se tivesse a metade das páginas, ou mesmo um terço.

15)Mais fácil de ler, sim, mas não necessariamente melhor. Entendo a proposta do livro, que exige tantas páginas de elucubrações sem fim. No mundo atual, que prioriza a velocidade e multiplicidade de informações, é provável que cada vez menos pessoas se interessem em ler “Ulisses”.

16)Desde o capítulo do bordel, uma ideia louca ficou martelando minha mente: imagine como seria esse livro transformado em filme! Impensável! Impossível! Ainda assim, creio que o David Lynch estivesse à altura da tarefa.

17)Comecei a ler “Ulisses” pela primeira vez há mais de dez anos, e acabei desistindo por volta da página 100. Mas fucei o “Roteiro-chave” que vem no final do livro, e hoje percebo o tamanho dessa influência em minha própria criação literária. Essa estrutura foi um eco distante na composição das letras da ópera-rock VIDA (gravada pela banda Imago Mortis), e teve uma força maior, ainda que mais distante ainda, na estrutura de meu romance “O Sincronicídio”. Que bom perceber isso hoje!

18)Não é fácil ler “Ulisses”, mas o esforço vale a pena – dependendo da motivação do leitor. Para mim, foi como galgar um Everest literário: veni vidi vici!!!

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