Coluna Asas #66 - O que raios laser é Ficção Científica? - (Davenir Viganon)

 


Arte.

Perdoem-me a resposta curta e seca para algo tão difícil de definir. É uma resposta curta, admito, mas tem o elemento que é tão fácil de se esquecer, de tanto que focamos no aspecto científico deste gênero que tanto amamos. A ciência da Ficção Científica é apenas uma variação das formas de escrever ficção. Digo escrever, pois foi na Literatura que a Ficção Científica nasceu. O pesquisador Alexander Meireles refere-se à FC como filha de uma mãe e dois pais. Nascida, primeiramente, pelas mãos de Mary Shelley (Frankenstein) e depois ganhando popularidade ainda maior com as obras de Jules Verne e H. G. Wells. Porém, o gênero recebeu esse nome apenas nos anos 1920, já em terras estadunidenses, nas revistas pulp, que popularizaram o gênero.


As ciências da FC eram principalmente as exatas, como a física e a química, além da biologia. Autores como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Ray Bradbury surgiram nesse período. Anos mais tarde, nos anos 1960, a New Wave foi o movimento que buscou novos horizontes e abordagens para a FC. As ciências humanas, como a antropologia e a linguística também inspiraram novas histórias. Ursula Le Guin, J. G. Ballard e Harlan Ellison surgiram.

Nos anos 1980, o movimento cyberpunk, idealizado por Bruce Sterling e William Gibson, buscou contrapor amplamente as FC da Era de Ouro (1920/50). Nesse período, as histórias eram basicamente otimistas, em futuros distantes, protagonizadas por heróis virtuosos, em naves espaciais e armados de pistolas de raios laser. Com os cyberpunks, as histórias eram em futuros próximos aonde a alta tecnologia, não viria acompanhada de uma vida melhor. Justamente o inverso. Temos distopias, a perversidade da tecnologia, garantindo o poder na mão de grandes corporações, em histórias com protagonistas desajustados e de caráter duvidoso, que muitas vezes apenas querem sobreviver.

Com esse histórico resumido a grosso modo, podemos apontar as diferenças desde obras como “A Princesa de Marte” (1917) até “Neuromancer” (1983), mas o que une todas as obras que classificamos como Ficção Científica, está justamente nos consensos e nos elementos que perpassam todas as obras. Por exemplo, desde que o termo robô foi cunhado pelo escritor Karel Capek em sua peça de teatro “R.U.R.” (em tradução livre: Robôs Universais Rossum) e o conceito se difundiu em tantas histórias, que já não há a necessidade de explicar detalhadamente o que é um robô, assim como naves espaciais ou ciberespaço. Há vários outros elementos, que podemos chamar de arquétipos, para a FC. Entre eles: Exploração/colonização de outros mundos, Guerras e armamentos fantásticos, Impérios galácticos, Antecipação de futuros e passados alternativos, Mutantes, Mundos paralelos, Computadores, Tecnologia e artefatos, Poderes extra-sensoriais, Viagem no tempo, Utopias e Distopias, entre outros.

Contudo, por mais que se evoque a ciência, que a história esteja correta cientificamente, o que enche os olhos do leitor de FC é justamente o passo que o autor dá adiante. A extrapolação dos elementos científicos inseridos nas histórias. Queremos uma verossimilhança com a ciência em relação à velocidade das naves espaciais e as distancias percorridas por elas, a custo de não embarcarmos na história, mas o que traz ao leitor o sentimento de maravilhoso/sense of wonder é a perspectiva de imaginar tais viagens, bem como imaginar a convivência com robôs, portar uma arma a laser ou navegar pelo ciberespaço (quando este ainda era ficção ou, ao menos, da forma como foi imaginado pelo autor).

Justamente por abarcar tantas formas, a FC tornou-se um gênero variado, versátil e combinável com vários outros gêneros, ao mesmo tempo em que difícil de determinar conceitualmente. Tentativas não faltaram, contudo, considero mais importante ressaltar a Ficção Científica como arte, uma vez que ainda sofre muito preconceito, e agora sobre literatura especificamente, uma vez que ainda é taxada como baixa literatura. Autores com obras notadamente de FC, buscaram se afastar de qualquer classificação, como Thomas Pynchon, William S. Burroughs, e até mesmo a rejeitar inteiramente qualquer relação, como Kurt Vonnegut. No Brasil, Alfredo Sirkis também alegou que seu Silicone XXI (1985), apenas a usava como pano de fundo. Recentemente, a criação de uma categoria à parte do prêmio Jabuti, para englobar a literatura de gênero (FC, Fantasia, Terror...) acendeu novamente o debate sobre a divisão entre baixa e alta literatura.

A nova categoria dá espaço para obras com probabilidade quase nula de indicação a melhor romance, enquanto também regulamenta e ratifica essa divisão. Ainda que essa iniciativa seja mais relacionada ao aspecto mercadológico das editoras, traz um benefício a curto prazo e ainda considero melhor tê-la do que não tê-la. Cabe aos autores continuarem a escrever boas obras, até conseguir furar a bolha que enjaula a Ficção Científica como se o gênero fosse algo pequeno. É uma consideração que faço pensando na FC como arte, como literatura, escrita em português e no Brasil.

Relembrar que a Ficção Científica é Arte pode ser algo óbvio, mas não estamos vivendo em um momento onde tantas coisas mais óbvias precisam ser reafirmadas?

Referências/dicas: Melhor que detalhar todas elas é ler de uma vez o capítulo II de A construção do imaginário cyber, de Fábio Fernandes. Lá há um resumo bastante substancioso que me ajudou a alinhas as reflexões que fiz aqui. Visões Perigosas, de Adriana Amaral, também é uma leitura que ajudará ao leitor mais curioso a ter mais curiosidade ainda sobre o assunto.


Imagem: "Binary", Gerd Altman, no site Pixabay.

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