Coluna Asas #63 - Aí, então, né... não tem? - (Eduardo Selga)

 


Itararé é um bairro curioso, pois o fato de ele ter sido construído sem qualquer planejamento, como de resto a maioria da cidade, faz com que existam umas ruas estreitas demais, que não comportam dois carros em sentidos opostos. Nesses logradouros, durante as noites e nos dias destinados ao descanso, muitos moradores gostam de conversar em grupos, recostados aos muros e às vezes até no meio da rua. Tagarelam divertidos sobre quase tudo, e parece haver apenas uma regra: não aporrinhar o outro com assuntos cacetes como, aliás, é o objeto destes parágrafos.

Quem já adquiriu um mínimo de experiência na vida, fruto de nossa perambulação sobre a Terra, com absoluta certeza conhece ou já conheceu ao menos um chato. É uma instituição nacional, como o cafezinho e a fila. Talvez até mundial. É aquele cidadão sutilmente egoísta que, não se percebendo incômodo ou pouco se importando com isso, despeja no outro, sem de fato interessar-se por ele, sua visão de mundo e/ou as últimas e quentíssimas notícias que tem dele, como se todos os outros sujeitos fossem uns néscios, desinformados de tudo.


Aqui faço uma ressalva: “mundo”, para o chato de galochas típico, é uma entidade que pode ter mais de um semblante: tanto pode referir-se ao imenso –o espaço geográfico do Planeta–, quanto ao minúsculo –a cidade, o bairro, a vizinhança, o próprio sujeito–.

E eis que me flagro também eu um chato a esmiuçar demais as coisas, circunstância que dá razão a alguns parentes e colegas que, pisando miudinho com as palavras ou fazendo grande alarde com elas, já me disseram que não sou nem um pouco diferente dos chatos que campeiam por aí.

Do alto da varanda em minha casa em Itararé, durante alguns sábados e domingos, eu havia reparado num comportamento interessante entre boa parte dos moradores da rua, apreciadores de um bom e evasivo bate-papo: a aproximação dela causava uma revoada nos grupos de amigos que conversavam. Porém, não tão rapidamente como o termo faz crer: ao contrário, as pessoas saíam aos poucos, esfarrapadas desculpas ou mesmo desculpa nenhuma. Alguns tinham a delicadeza de não ofendê-la, por isso saíam antes de ela chegar; outros, se tomavam esse cuidado, era muito mais por causa da suspeita de que faltava algum parafuso na cognição dela.

Passei a perguntar a mim mesmo dos motivos para semelhante comportamento. Seria possível ela não perceber o quanto sua presença era indesejada? Mesmo a batida em retirada sendo à francesa não era necessário muito para ver que algo acontecia de estranho ante sua presença nos grupos, ou à simples aproximação.

Assuntei. Como quem nada quisesse, fiz perguntas daqui e dali a algumas “vitimas” mais constantes da mulher. Talvez por eu ser uma criatura de poucos amigos, fechado em copas, não houve grandes avanços: sorrisos desconversadores, acompanhados de palavras que desaguavam em lugar nenhum; sinais contraditórios, que simultaneamente diziam e negavam. Até que minha vizinha da casa de baixo, mulher de grande senso prático e que considerava cuidar de flores uma frescura inútil, no rosto a expressão de quem me considerava um ingênuo ou desinformado acerca da natureza humana, me propôs um desafio: “o motivo eu sei, mas não vou dizer. Por que você mesmo não conversa com ela”?

Não se estabelece uma amizade minimamente sólida no espaço entre a noite e o dia, acredito que isso deva ser consenso entre os que vivem nas metrópoles, esses amontoados desumanizantes. No entanto, como minha curiosidade era maior que esse obstáculo e solidez não era a minha busca, aos poucos me fiz aproximar, principalmente porque continuava a assistir ao fenômeno da debandada. Por não estarem devidamente acionados os radares que todos precisamos ter em qualquer relação interpessoal, não percebi a tempo que alguns tentaram sutilmente alertar-me.

Estreamos nossa amizade (ou melhor dizer coleguismo?) com uma conversinha boba aqui, ali um diálogo mais aprofundado sobre as possibilidades reais de chuva naquele dia, até que ela se considerou à vontade para falar-me sobre sua pessoa. Era tudo o que eu queria. Caíra na armadilha de minha infalível lábia, e nem poderia ser diferente, afinal sou muito esperto para essas coisas.

Foi a partir desse instante que entendi com todas as letras as razões do pessoal: ela era, e continua sendo, chatíssima. E isso resultava nem tanto dos assuntos abordados, e sim de como ela construía seu discurso. Era uma repetição infinita de “então”, “aí, né”, “não tem?” e “eu disse bem assim”. Além disso, havia algo bem pior, porque dificultava minha saída estratégica, como faziam os outros: a conversa nunca chegava a termo. Ela iniciava o assunto, mas não o concluía. Dava voltas enormes, avião a circundar várias vezes a pista do aeroporto à espera de teto para descer em segurança; abordava assuntos paralelos que por sua vez entravam em becos sem saída, em solo infrutífero, motivo pelo qual ela retornava ao principal da conversa. O resultado era uma prosa que ficava numa eterna introdução, prolegômenos absolutamente inúteis. E que, honestidade é preciso, dava nos nervos.

Para ter melhor ideia do que eu estou dizendo, imagine o caro leitor o seguinte monólogo de quem me dissera que ia narrar os motivos pelos quais não tardaria a pedir a separação conjugal. Casada?! Pobre homem, certamente ele tinha razões para desembarcar daquela canoa furada, se quisesse.

– Aí, então, eu disse bem assim para a mãe dele, a Dona Miúda: “Dona Miúda...” (nome esquisito para uma mulher de quase dois metros, mas ela me disse que o pai dela disse que era um tratamento carinhoso... Vá entender...).

– Sim, mas o que tem ela?

– Ela quem?

– A tal Dona Miúda, menina!

– Não, você não compreendeu: o apelido dela não é Miúda Menina, e sim Miúda.

– Sim, está bem, eu não compreendi... Mas o que você disse a ela?

– Então... Eu ia justamente dizer, mas você me interrompeu, não tem? Aí, né, eu disse bem assim: “Dona Miúda, quando eu e seu filho nos conhecemos...” Ah, seu moço, eu me lembro até hoje, não tem? Eu estava na pracinha, era noite, comendo um churrasquinho para matar o tempo. Aí, né, eu disse para Dona Miúda: “ele apareceu com aquele sorriso amarelo de sempre, fiapo de carne entre os dentes, e disse bem assim, com lata de cerveja na mão, a voz esganiçada: ‘se a gatinha me deixar sentar ao seu lado eu lhe ofereço um gole...’”.

E aí, como livrar-me dela? No diálogo reproduzido pela minha memória, e que a mulher evidentemente não concluiu, fui salvo pela Providência Divina, encarnada na minha vizinha da casa de baixo, a mesma que me sugerira conversar diretamente com a chata: testemunha à distância de meu desespero, ria balançando negativa e discretamente a cabeça, uma zombaria de meu Calvário ou de minha inteligência. Aproximou-se, espalhafatosa e incisiva.

– Agora chega, coleguinha! Estou de olhos e ouvidos muito atentos à sua conversa, fique sabendo. Está interessada no gato aqui, fofa? Esquece. Cheguei primeiro.

Piscou o olho para mim, sugerindo que eu fosse cúmplice da farsa.

– Não é mesmo, amoreco?

A mulher assustou-se. Não entendeu muita coisa, e saiu reclamando da suposição precipitada da minha vizinha. Desculpas por qualquer coisa, não era o que a vizinha estava pensando. E esta, sorriso por fora e gargalhadas por dentro, virou-se para mim, braços cruzados.

– Acho que agora você entendeu bem o motivo de todo mundo sair de fininho ou até mesmo na caradura. Não é, amor?

Sim, e nem haveria como não entender. Depois de tudo, em casa trocando umas ideias com meus botões sempre muito tagarelas, fiquei a perguntar-me até que ponto é possível alguém com tais características ser minimamente feliz, manter sólidas relações afetivas. Não creio em felicidades que tenham semelhante fisionomia. Imagino ser uma tristeza enorme habitar um mundo monologado, sem interlocutores, quando se tem a necessidade de troca, como era, do meu ponto de vista, o caso dela. Tanta falação era necessidade de ser ouvida, mas também de haver alguém que frontalmente retrucasse ou que concordasse com ela, de modo a estabelecer-se um pingue-pongue dialético. Carecia de vida, de uma alegria que nem precisava ser o que costuma ser, meras franjas de felicidade: bastava que fosse mesmo apenas uma alegriazinha.

Esse pensamento com ares de bom samaritano foi muito útil para aliviar minha consciência de dois incômodos: a sensação de não ter sido elegante com ela ao demonstrar impaciência (mas... terá percebido?); a certeza de minha silenciosa desonestidade ao concordar com a súbita mentira da vizinha do pavimento inferior. Porém, não sobreviveu mais que um dia meu samaritanismo de fachada, como em geral acontece com as falsas piedades.

O sol estava sequestrado entre as nuvens de inverno que sobrevoavam Itararé e a cidade de Vitória, empurradas pelo Atlântico. Eu regava as plantas de minhas jardineiras, quando a tal chegou de repente, uma desfaçatez que provavelmente ela mesma não tenha percebido. Depois a vizinha me confessou: abrira o portão para tão agradável visita. Refeito do susto, pude perceber a timidez no sorriso e algum desconforto.

– Bom dia, seu moço. Então. Pois é... Alguém me disse bem assim que você escreve umas coisas aí, não tem? Parece que é livro, jornal, blogue... Aí, né, eu disse bem assim para mim mesma: será que ele sabe que minha vida daria um livro?

Tenho certeza não consegui conter o espanto causado pela última frase dela, mas certamente fui excessivo nos olhos arregalados, talvez uma cara horrível, porque logo em seguida ela tentou consertar a situação.

– Calma, não quero confusão com a sua namorada aí de baixo, eu só vim para terminar o caso que eu estava lhe contando ontem, não tem? Aposto que ficou curioso para saber como termina.

Santo Deus...

– Aí, né... Eu disse bem assim... 

Foram mais uma ou duas horas de falatório quase ininterrupto, mas já nos primeiros dez minutos mergulhei em mim mesmo, voltando à tona poucas vezes para um sorriso mentiroso ou oferecer qualquer coisa que ocupasse sua boca. Durante o tempo em que eu nadava nas profundezas de minhas próprias águas, ouvindo o som das palavras que vinham do mundo exterior como um murmúrio de remos dando beijos de língua no mar, concluí: não se tratava apenas de carência, como meus botões me disseram: havia grande dose de um bem disfarçado egoísmo de quem se importa apenas consigo e nenhum pouco com as orelhas alugadas dos amigos e colegas, característica típica dos chatos profissionais.

Egoísmo e desespero. Apesar de abstraído em mim mesmo, por vezes tinha a sensação de que ela precisava angustiadamente falar, falar e falar muito mais, como artifício que degolasse as vozes interiores que a perseguiam. Matraqueava sem fim porque precisava mantê-las em silêncio.

Num mundo cada vez mais pautado pela individualidade em detrimento do coletivo, eu não deveria surpreender-me com ela. Basta olhar em torno: boa parte de nós está ficando assim, falastrona, discursando para grandes paredes coloridas chamadas redes sociais, ao mesmo tempo Muro das Lamentações e tribunal de uma moderna Inquisição. Assim, a mulher de quem todos fogem, eu inclusive, não passa do real levado a extremos, uma possível antecipação de nós. De todo o modo, assusta-me a hipótese de ficarmos insuportavelmente chatíssimos, ou, como diz meu pai, todos uns Chatonildos dos Anzóis Carapuças.



Imagem: "Group" (Gerd Altmann, no Pixabay).

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