Coluna Asas #62 - O Holocausto é aqui - (Evelyn Postali)

 



Dia desses passei os olhos em uma publicação no Facebook e parei aturdida pela imagem que ela continha e meu primeiro pensamento foi do quão impactante pode ser uma fotografia. Um segundo depois já estava relacionando a fotografia com nossa realidade brasileira. Vamos à la Jack, ou seja, por partes.

Na imagem, havia homens de sobretudos e chapéus sobre escombros e livros, em frente às prateleiras do que, provavelmente, teria sido uma livraria ou biblioteca. Segunda Guerra Mundial, pensei, pelo que li do conjunto, e fui em busca da origem da imagem, alguma história que me aquietasse a curiosidade. Sim. A imagem é de uma livraria, a Holland House, de Londres, parcialmente destruída durante a batalha aérea travada entre a Força Aérea Real e a Luftwaffe, entre os meses de julho e outubro de 1940. A foto é de um correspondente cujo nome é Harrison. O título, Keen Readers (leitores interessados) é, não apenas peculiar, mas ardiloso (eu explico o porquê depois). Encontrei, ainda, uma imagem do interior do estabelecimento, de anos anteriores. E, por fim, fui agraciada pela imagem de como ela era antes do bombardeio e como ficou, restaurada, anos depois.


Seria ingenuidade pensar que tal imagem possa conter apenas um fato histórico, uma das inúmeras consequências de uma batalha travada entre ingleses e alemães nos céus de Londres. Imagens contêm leituras de mundo. Nesse caso, a do fotógrafo, sim, mas, também, a dos muitos leitores – leitores de imagens – através dos anos, porque, apesar de antiga, em cada época em que for acessada, vai falar um pouco do momento presente.

É estarrecedor o quão próxima de nossa realidade está essa fotografia específica. Quando digo que o título não é apenas peculiar – leitores interessados –, mas ardiloso e perspicaz é porque tenho em mente o momento atual no qual estamos vivendo. Ela nos remete ao livro, sim, não só como objeto de desejo, ou arma contra a ignorância, paixão pelas nuances do mundo ou pelo desassossego da sensibilidade, mas a imagem, penso eu, nos induz a refletir como o livro chega até nós, leitores interessados, nesse Brasil atual, tão controverso e avesso ao que nos é caro: cultura, educação, leitura. A imagem nos lança para perto de questões que nos falam de como tê-los nas mãos alude sentimento irretocável de posse de um universo peculiar e multifacetado; de como os livros, por sua natureza rebelde, contraventora, subversiva, nos fazem mergulhar em reflexões perigosas aos todo-poderosos, atemorizados da revolução advinda do conhecimento.

Fico a imaginar, ao ver os três leitores em frente às prateleiras semidestruídas, pacificamente lendo ou procurando por algum título, se isso aconteceria nesse país, se a possibilidade de entrar em um recinto repleto de livros despertaria o interesse pela leitura, ou se, para além das brechas na economia doméstica, haveria o interesse na compra de algum exemplar.

No ano de 1946, o então deputado e autor Jorge Amado discutiu a imunidade tributária para os livros, assegurado na Constituição de 1988. A queda do índice de leitura ao longo dessa década ainda é discutida e a retração da indústria do livro em um período de 14 anos não desacelerou. Como é possível não termos evoluído positivamente nesse mais de meio século?



Diante de uma livraria destruída pelas bombas aéreas está nosso caos atual, onde, não se podendo queimá-los, ou proibi-los, lançam-se bombas em formato de impostos e propagandas sutis a diminuírem a importância da leitura, entraves burocráticos impedindo a chegada deles até as escolas, fazendo com que nossas mãos, nossos pensamentos, nossos desejos, esvaziem-se das letras, das histórias, das contações mirabolantes contidas nesses alfarrábios. Diante de uma livraria destruída estão inúmeras outras livrarias, fechadas por bombas de incompetência de governantes sem caráter, vindas de anos anteriores e intensificadas na atualidade.

O mesmo bombardeio se faz nas bibliotecas públicas municipais com poucos recursos e acervo, e na escola pública, onde a primeira sala fechada quando falta recurso humano é o espaço da leitura e da pesquisa. As bibliotecas escolares são o primeiro espaço sem profissional habilitado para o trabalho, e os últimos espaços a receber recursos físicos e materiais. E, não bastasse isso, conseguimos professores de Língua Portuguesa que, ou leem pouco pela sobrecarga de trabalho, ou não leem, e, ao ensinar Literatura, apontam apenas para a cronologia dos movimentos literários e não para o conteúdo de livros "clássicos" ou contemporâneos.

A nós, que apreciamos os livros, a escrita, a leitura, ainda nos resta um fio de esperança, talvez? A curto e médio prazos, impossível, sendo a leitura um hábito formado, na maioria das vezes, na infância. Em meio a tamanho descaso, onde buscaríamos amparo?  As perguntas sempre ficam, mas a certeza é sempre uma: livros deveriam estar em nós feito o ar que ser respira. Sem eles, sem a leitura, sem tê-los como necessidade básica, não vamos a lugar algum, nem como pessoas, nem como sociedade, nem como país.

 

 

Créditos e links para as imagens:

Keen ReadersReaders choosing books which are still intact among the charred timbers of the  - Holland House library, London, 23rd October 1940. (Photo by Harrison/Fox Photos/Hulton Archive/Getty Images) https://www.gettyimages.com.br/detail/foto-jornal%C3%ADstica/readers-choosing-books-which-are-still-intact-among-foto-jornal%C3%ADstica/2672731

https://en.wikipedia.org/wiki/File:Holland_House_library_after_an_air_raid.jpg

https://en.wikipedia.org/wiki/Holland_House#/media/File:Comparison_of_Holland_House,_Kensington,_in_1896_and_2014.png

https://vintagenewsdaily.com/pictures-inside-the-library-of-holland-house-in-1907-and-in-1940-with-bibliophiles-after-german-world-war-ii-bomb-damage/

H. N. King (1896 photo), Edward Hands (2014 photo), Lobsterthermidor (compilation) File:Holland House, 1896 by H. N. King, cropped and straightened.jpg and File:Holland Park 02.JPG

 

PARA LER MAIS:

Índices de leitura no Brasil:  AGÊNCIA BRASIL

Sobre a indústria do livro: https://www.publishnews.com.br/materias/2020/07/09/industria-do-livro-encolhe-20-nos-ultimos-14-anos-aponta-nielsen#:~:text=O%20que%20se%20v%C3%AA%20%C3%A9,25%25%20nos%20%C3%BAltimos%2013%20anos.

Caro, elitista e excludente: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/08/22/livro-no-brasil-e-caro-elitistas-e-excludente-diz-cocriador-da-flup.htm

Queda do setor: https://observatorio3setor.org.br/noticias/em-um-ano-producao-de-livros-no-brasil-cai-em-43-milhoes-de-exemplares/

Mercado editorial – números da crise: https://www.comciencia.br/mercado-editorial-apostou-imprudentemente-no-brasil-e-quebrou-a-cara/

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