Coluna Asas #60 - Quem te inspira? Minha paixão pelo Peter Milligan - (Fil Felix)
E como bom sagitariano que sou, fiquei extremamente empolgado e caí de cabeça nesse universo, frequentando feiras, garimpando HQs em sebos, criando um blog para resenhas (que mantenho até hoje!) e por um tempo até fiz parte de grupos de scan! Hoje, 15 anos depois que comecei a colecionar, percebo que essa minha fixação foi responsável até mesmo por me fazer mudar de profissão, de largar a graduação em Ciências Biológicas e partir para as Artes Visuais, de querer ser um ilustrador e também poder escrever minhas próprias histórias.
E entre todos os autores que eu lia nesses primórdios, um deles realmente foi minha inspiração máxima, meu ídolo particular. Acredito que todo mundo que trabalha com criação tem aquela pessoa que a gente olha e diz: “bem que eu queria escrever como ela”. Histórias que a gente lê e gostaria de ter sido o autor, de tão profunda a nossa identificação com a obra. E pra mim, essa pessoa foi o Peter Milligan: escritor britânico que criou algumas das melhores histórias que já li, com roteiros intrincados, psicodélicos e à frente do seu tempo, além de um olhar bastante crítico, abordando questões que eu dificilmente vejo em outras HQs.
Durante os anos 1980, Milligan trabalhou em revistas antológicas como a 2000 AD e Strange Days, criando séries como Paradax e Freakwave, firmando parceria com o desenhista Brendan McCarthy (outro dos meus ídolos) e estabelecendo algumas de suas principais características: o visual e temática lisérgicos, temas controversos, violência e linguagem explícitas; chamando a atenção do mercado norte americano, em especial a DC, que vinha importando autores britânicos a fim de repaginar alguns personagens da editora. Esse período, final dos anos 1980, foi conhecido como a “Invasão Britânica” das HQs.
Essa Invasão viu autores como Neil Gaiman repaginando o Sandman, Grant Morrison com o Homem Animal e o próprio Alan Moore, considerado um dos nossos gênios contemporâneos, com o Monstro do Pântano. Peter Milligan chegou a escrever em 1989 a elogiada Skreemer, série em seis edições que se passa após a queda da civilização, num futuro onde Veto Skreemer percebe que o mundo em que vivia mudou e é necessário uma nova adaptação. Apesar de passar despercebida, ganhou diversos elogios e concedeu a Milligan a chance de trabalhar numa série longa para a DC: a repaginação de Shade, o Homem Mutável em 1990.
Lembro de ter visto as capas de Shade, boa parte desenhadas
por Brendan McCarthy, e me apaixonado. Quando soube do teor das histórias,
senti que era aquilo que gostaria de criar! Nela, Rac Shade sai da dimensão
Meta para a Terra e toma o corpo de Troy Grenzer, um serial killer condenado à
morte, com a missão de evitar que a Loucura
que vazou de Meta tome conta dos EUA. O problema é que a primeira pessoa
que ele encontra e pede ajuda é Kathy George, cujos pais foram assassinados por
Grenzer! O primeiro arco, O Grito
Americano (edições #1-6), é uma das melhores coisas que já li e traz um
roteiro genial. Sendo britânico, Milligan enxergou na revista uma oportunidade
de fazer uma crítica ao sonho americano, usando da “Loucura” para abordar
questões como patriotismo, histeria coletiva e teorias da conspiração. Num dos momentos
mais emblemáticos, uma esfinge surge no meio da rua e questiona quem ousa
passar por ela: “quem assassinou JFK?”.
A esfinge, além de ter a cabeça do próprio John F. Kennedy, é uma “esfinge
americana”, que consome e devora tudo em seu caminho.
Shade, o Homem Mutável é considerado um dos maiores trabalhos do autor, sendo publicado entre 1990 e 1996, rendendo 70 edições. O fato de Rac Shade precisar ocupar um corpo humano e também usar uma roupa especial (o Traje Loucura) são dois pontos que aparecem em outras histórias suas, essa “troca” de roupa como ferramenta para discutir sexualidade, gênero e moral. Entre as edições #33 e #50 da revista, por exemplo, Shade muda de corpo e passa a habitar o corpo de uma mulher, trazendo elementos a respeito da transexualidade.
Mas a HQ que aborda esse uso do traje de maneira mais
explícita talvez seja O Extremista, minissérie em 4
edições lançadas pela Vertigo (selo adulto da DC) em 1993. Na trama, Judy
Tanner é a pessoa a usar o traje do Extremista atualmente, a figura responsável
por proteger e até matar em nome da Ordem, uma rede de clubes sexuais. Judy é
uma mulher reprimida que mal consegue falar sobre sexo, mas que ao vestir a
roupa do Extremista ela consegue se libertar. Uma ótima HQ que comenta sobre nossas
máscaras sociais e o quanto nos repreendemos em nome da moral e dos bons
costumes.
Ainda em 1993, Milligan publicaria outra pérola: Enigma, minissérie em 8 edições lançada pela Vertigo e que é uma grande metáfora sobre a descoberta da sexualidade. O protagonista, Michael Smith, é um jovem extremamente sistemático que entra em coma ao ser atacado pelo vilão Cabeça. Ao acordar do coma, tido como um milagre, ele passa a ficar obcecado pelo herói mascarado Enigma, que tentou salvá-lo do Cabeça e que é muito semelhante a um gibi que lia na infância. E aos poucos Michael passa a questionar sua heterossexualidade e sua fixação por Enigma. O subtexto dessa minissérie é magnífico, a começar pelos vilões que ganharam nomes como Cabeça e Verdade. Num trecho, por exemplo, o noticiário anuncia que “a Verdade está matando pessoas na Igreja”. Toda a história é uma viagem alegórica pela transformação ou aceitação de Smith sobre sua própria sexualidade. Anos mais tarde, em 2001, Milligan assumiria a revista da X-Force (que se transformaria em X-Táticos) e nos apresentou diversos mutantes LGBT, assim como escrevendo o primeiro beijo gay publicado pela Marvel!
Mas pra não ficar (muito mais) longo o artigo, gostaria de encerrar esse meu momento tiete do Peter Milligan com sua HQ mais bizarra, psicodélica e genial, desconhecida por muitos. Trata-se de Rogan Gosh, publicada em 1994 também pela Vertigo e com desenhos do Brendan McCarthy. Lembro de ter visto algumas imagens dessa one-shot quando era adolescente, mas nunca consegui ler na íntegra até meados de 2017, quando finalmente pude ler e fiquei extremamente apaixonado pelo nível de profundidade da história, além da arte excepcional, uma viagem lisérgica sobre autoconhecimento com mitologia hindu.
Rogan Gosh é um ser místico, um karmanauta, que é
amaldiçoado por Soma Swami ao tentar livrar o mortal Rudyard Kipling da
maldição de Kali. Rogan entra num ciclo de morte e renascimento, passando por
diversos corpos e vidas, lidando com problemas diferentes em cada um deles. Milligan
usa de toda a mitologia hindu, indo de deuses ao Véu de Maya, culinária
indiana, chakras, entre diversas simbologias orientais como a Lótus. Rogan Gosh
também é azul, como a coloração comum de Krishna. Hoje em dia muitos dos meus
personagens são azuis devido ao impacto que Rogan Gosh teve em mim. Inclusive
meu conto O Suplício de um Deus também foi
levemente inspirado nessa HQ, na época até usei o pseudônimo “Rogan”.
Tudo acaba funcionando como uma metáfora sobre as
possibilidades, sobre nossos sentimentos, nossas crenças, nossas paixões e a
realidade que nos cerca. Um material que ao lado de outros títulos como Shade, O Extremista e Enigma demonstra
a capacidade do Peter Milligan em escrever histórias reais, mas a partir de uma
lente fantástica e sem pudores, conseguindo navegar entre o onírico e o belo,
mas sem se preocupar em ser menos violento ou explícito.
Preciso nem dizer que eu gostaria de ter escrito todas elas, né? Tanto o Milligan quanto Brendan McCarthy estão entre os autores que mais me inspiram. E é muito bom saber que ele é um contemporâneo meu, já que no mundo da literatura e das artes costumamos seguir o modelo de autores de outras épocas. Isso faz com que eu me sinta mais próximo dessa realidade e, de alguma forma, mais encorajado a continuar. E de uma maneira indireta, já que não aspiro entrar no mercado de HQs.
Lá no meu blog eu venho resenhando as HQs escritas pelo Peter Milligan e, se ficou curioso com essas que citei, dá uma olhadinha no review que fiz de cada uma. Quem sabe um dia venho comentar sobre seus trabalhos mais recentes!
Shade, o Homem Mutável: O Grito Americano
O Extremista: Quais São os Seus Limites?
Enigma: a Cabeça,
a Verdade e a Garota Envelope
Rogan
Gosh: Uma Jornada Psicodélica
E pra você, quais são seus modelos de inspiração?
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