Coluna Asas #59 - O autor canino - (Bruno Andrade)

 


Quando criança — tenho quase certeza de que já fui uma —, eu sabia perfeitamente o que era bom: os Cavaleiros do Zodíaco, filmes de ação, pizza, videogame, gibis da Turma da Mônica e livros da coleção Vaga-Lume. Não precisava de validação alheia, tampouco me intimidava com opiniões contrárias: tal qual um cachorro, eu só precisava seguir meus sentidos e minha intuição; o que eu visse, ouvisse, sentisse, cheirasse ou provasse e me parecesse bom, decerto era bom. E eu vivia feliz correndo e latindo atrás de carros, sem me preocupar com o que faria quando eles parassem.

Já adolescente — tenho quase certeza de que nunca fui um —, entendi que havia um universo inteiro que eu não conhecia, recheado de coisas realmente boas; já as que eu gostava eram bobas e deviam ser deixadas para trás. Porém, não descobri explorando o mundo com meu focinho. Assim como um cachorro, eu fui ensinado, adestrado. Aprendi que os bons filmes não poderiam ter o Van Damme de shortinho dando chutes giratórios ou o Schwarzenegger derrotando um exército inteiro sozinho; os bons filmes, os realmente bons, eram aqueles meio chatos que eu nem conseguia entender. Aprendi quais eram os melhores sabores sem que eles tivessem contato com minha saliva, os melhores cheiros sem que meu nariz trabalhasse, as melhores músicas tendo ouvido nada além do nome de seus compositores. E, como um bom cãozinho adestrado, eu repetia satisfeito os novos truques, esperando ganhar biscoitos por ser um bom menino.

Sendo dado aos livros, foi sobre literatura que aprendi a maioria dos meus movimentos. Comecei a dar a pata para Machado de Assis, a deitar de barriga para cima esperando carinho de Shakespeare, a balançar alegremente o rabo para Clarice Lispector, muito embora não tivesse lido ainda nenhum desses autores. Também me ensinaram que precisava mostrar os dentes, e logo eu rosnava para Paulo Coelho e Dan Brown, mesmo que não enxergasse neles ameaça alguma.

Foi repetindo meus truques que ingressei no curso de Letras. E, em poucas semanas na universidade, já latia a importância da obra de Kafka, de quem eu jamais ouvira falar até então. Escalei para os teóricos: Todorov, Kayser, Cândido. Uivava nomes russos que sequer conseguia soletrar. Onde me jogassem uma bolinha, eu ia satisfeito buscar, esperando o afago da aprovação.

Saí da faculdade sem diploma, mas capaz de impressionar qualquer um com minhas piruetas literárias. Comecei a arriscar meus primeiros escritos e logo era um jovem escritor cheio de referências; a maioria oca, algumas simplesmente falsas. Mas bastava algumas gracinhas e eu recebia elogios e cafunés.

Porém, aos poucos, fui descobrindo que, como autor, eu era um belo de um vira-latas. Preferia correr atrás da primeira ideia que passasse — mesmo que jamais soubesse o que fazer com ela quando a alcançasse — à rigidez dos movimentos ensaiados. Descobri o que realmente me dava vontade de rosnar: perceber os mesmos truques repetidos à exaustão pelos cachorrinhos de madame que buscavam os primeiros lugares das exposições.

Agora, teoricamente adulto e escritor — ainda com sérias dúvidas acerca da minha capacidade sobre ambas as condições —, fico feliz em voltar ao meu sábio estado infantil. Sigo meus sentidos, minha intuição. Sem vergonha nenhuma de recusar a mais conceituada ração, ou de ser pego revirando o lixo. Recuso qualquer coleira que limite meus horizontes, não cumpro ordens de comando. Gosto da liberdade de explorar o mundo e descobrir o que realmente apetece meus sentidos, sem me preocupar com o que foi definido como bom ou não. Leio e escrevo de maneira instintiva. Sou um autor canino.

Nos intervalos, pizza e videogame.

E pouco me importa o que pensariam Todorov, Kayser e Cândido.




Imagem: Jan Steiner, por Pixabay.


Comentários

  1. Que baita mordida, caro canino. Daquelas de deixar a marca. Gostei especialmente da parte "Também me ensinaram que precisava mostrar os dentes, e logo eu rosnava para Paulo Coelho e Dan Brown, mesmo que não enxergasse neles ameaça alguma." Essas necessidades protocoladas também me irritam muitíssimo.

    ResponderExcluir
  2. Uau! Amo ser um caninozinho vira-latas. Adoro saber que apesar de dar patinhas para Machado, que li e amo como contista, crítico literário, romancista e até cronista, também posso curtir um cordel e esfarelar as palavrinhas "desavergonzadas" dessa Literatura com alegria, sujando todos os espaços... Amei sua escrita, Bruno, gosto de pensar que escrever como quero, gostar de gibi, pizza e sofrer tentando com video-games sou eu mesma, na minha versão quase adulta, com minhas escolhas. Cândido, Todorov, Esslin, Moisés, Bakhtin e aquela "canalhada" toda, ficam para a Elisabeth que trabalha, a que escreve nem sabe mais quem são. Hehehe. Parabéns pelos latidos sapientes.

    ResponderExcluir
  3. Eita, que texto incrível! Tudo bem sentir inveja de quem a gente gosta? Não é pecado, não, né? 😅
    Quem sabia que essa raposa escrevia crônicas tão boas? Eu!
    Eu te disse, eu te disse! 😉
    Parabéns, Bruno! Amei!

    ResponderExcluir
  4. Adorei, Raposinha.Uma bela reflexão. Realmente esta vigilância e imposição da sociedade (eu incluida nela) sobre o que é bom e ruim, o que pode e o que não pode ser consumido não sentido nenhum. Nós armamos a arapuca e caimos nela...Felizmente hoje também me sinto mais à vontade para confessar minha pouca intimidade com o que dizem ser bom e me chafurdar na lama sem tanta cobrança. Parabéns.

    ResponderExcluir
  5. É isso aí! Excelente reflexão. Parabéns!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Coluna Asas #74 - Singular - (Giselle Fiorini Bohn)