Coluna Asas #57 - A história sem fim - (Giselle Fiorini Bohn)
Decido escrever um conto, cerca de mil palavras; nada que exigiria mais do que uma ou duas horas. O enredo é claro, assim como as escolhas relevantes: espaço, foco narrativo, tempo. Então eu termino. Fim.
Nanã, nada disso. Agora, sim,
começa o trabalho, que não levará algumas horas, mas muitas, ao longo de vários
dias: decido editar esse texto. E então um “somente” vira “apenas”, um “rápido”
se transforma em “veloz” e um “de repente” dá lugar a um “subitamente”. Um
parágrafo é desmembrado em dois, um ponto final não mais encerra nada mas deixa
muito em aberto com um ponto e vírgula, a protagonista muda de nome. Há agora
quatro arquivos muito parecidos com títulos diferentes. As mil palavras
originais devem ter gerado outras mil, que ficarão para sempre perdidas.
Então o conto é finalmente batizado;
não se fala mais nisso. Mas, seguindo seu nome dentro da pasta, há adendos como
NOVO, FINAL, REVISADO e suas combinações: NOVO FINAL, REVISADO NOVO, FINAL
REVISADO. Tenho até mesmo um NOVO REVISADO FINAL DEFINITIVO SÉRIO. Juro.
Mas por que eu não consigo botar
um fim nessa história? O que me faz ser incapaz de escrever um texto e confiar
que ele se basta, o perfeccionismo ou a insegurança?
Suspeito que sejam os dois, em retroalimentação.
O perfeccionismo pode ser apenas medo
disfarçado, uma estratégia irracional para que o produto seja irrepreensível –
como se isso existisse. E esse medo também poderia receber o nome de
insegurança. Afinal, se eu conseguir deixar o texto preciso, se nada sobrar ou
faltar, se todas as palavras forem escolhidas cuidadosamente, se todas as
vírgulas e todos os pontos finais caírem nos lugares exatos, não poderão me
criticar, certo?
Errado. As críticas positivas ou
negativas estão muito além do meu domínio sobre a pontuação ou dos adjetivos
que eu troco incessantemente. A verdade é que a aceitação do que eu escrevo independe
das escolhas que eu faço, por mais cuidadosa que eu seja. Não importa o quanto
eu edite o texto, ele ainda assim não será perfeito, porque perfeição é
um substantivo que na arte anda em searas diferentes de outro chamado unanimidade.
Muitas vezes, o que para muitos é genial eu mesma acho chato pra burro, e o
que a mim parece o ápice da criatividade humana é recebido por outros com um
muxoxo que me exaspera.
E eis que cá estava eu com esse
impulso insano de editar até a completa exaustão quando, há pouco, alguém me
enviou uma citação atribuída a Leonardo da Vinci: “Arte nunca é terminada,
apenas abandonada”.
Pois agora faço questão de
acreditar que da Vinci disse mesmo isso - e sistematicamente ignorar que pode
ser uma daquelas mentiras da internet -, porque é nessa ideia em que quero me
agarrar. Sim, se o que escrevo é uma tentativa de fazer arte, como tal ela não
pode ser terminada: preciso abandoná-la. Em algum momento tenho que deixar que o
texto se vá, que saia de minhas mãos, que pertença a alguém, e viver com o fato
de que esse alguém vai fazer dele e com ele o que quiser. Até mesmo achar um
lixo total.
Esse desprendimento é doloroso, o
resultado é imprevisível, as chances de rejeição são enormes; é, ego, aceite, que
dói menos. Esse é o preço de se meter a querer fazer arte.
Ninguém disse que seria fácil,
mas também ninguém disse que não seria recompensador às vezes, uma coisa meio
agonia e êxtase.
Hmmm, isso tem a ver com
Michelangelo. Melhor parar, porque já comecei a misturar os italianos.
Imagem: "Monalisa", por PixArc, disponível no Pixabay.
Muito elucidativo, por causa desta angústia eu possuo um verdadeiro necrotério de contos que apodrecem esperando que eu os finalize e os jogue para o mundo.
ResponderExcluirNem me fale, amiga... :-(
ExcluirObrigada por ler!
Beijo!
Doce deleite sou eu, Iolandinha.
ResponderExcluirAutoflagelo contista é saudável. Mas eu sempre concluo. Mas romance tenho 3 esqueletos na gaveta.
ResponderExcluirEu não consigo nem começar a escrever, quem dirá terminar algo, Giselle. :/ Adoro seus textos, sempre falam mto comigo. Bjs
ResponderExcluirAh Giselle, como sempre excelente. Adoro textos sobre processo criativo, e o seu conversa diretamente comigo. Confesso que, tomado pela urgência, publico sem o devido esmero, para não perder o valor do texto. Felizmente, quando é nas redes sociais, a gente consegue revisar mesmo depois de publicado o texto. Já os livros, esses passam por um longo inverno: é gaveta, é sublinhar os verbos, é pagar revisor, leitura crítica, até o distanciamento quase total da obra nos gerar, consequentemente, certo estranhamento.
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