Coluna Asas #56 - Das reflexões... - (Evelyn Postali)
“Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa.
Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa.”
Fernando
Pessoa
Penso em mim, enquanto ser humano, enquanto mulher que escreve e desenha, como uma casa entulhada de coisas e silêncios, rostos, objetos, nomes, lugares, vazios enormes, luzes e escuridão, um amontoado de eventos, marcados nas paredes que se entrepõe entre um tempo e outro, entre o passado e o presente, formando um labirinto tantas vezes indecifrável, mutável, atravessado de ideias.
Sou uma casa onde a necessidade de haver portas e janelas
escancaradas é constante. Espaços múltiplos, conjugados, grandes, pequenos,
agregados ou isolados. Cômodos que se espalham, reservados para a criação, onde
são guardados manuscritos, ora em sótãos ensolarados, ou em porões lúgubres,
espalhados por salas, cozinhas e quartos.
Não há meio termo: ou a casa está ruidosa, transbordando de
sons e movimentos, de cores e formas, de espirais mirabolantes, de conexões
fortes, seguras, ou está mergulhada em calmaria, em total contemplação do nada,
um fruir íntimo, ou resignada ao ócio. Solitária. Nem sempre sozinha, mas
solitária em meu fazer, no escrever incansável ou no rabiscar constante.
A escrita e o desenho é um nascer e um renascer na sonoridade
do que sou e sei, e quero e não quero. Existe em mim o entrelaçamento do mundo
de lá de fora com o que há do lado de dentro. Vai ecoando, batendo nas
divisórias frágeis, ou nas muralhas, até saltar para fora em parágrafos e mais
parágrafos, ou em traços, cores, formas, figurativas ou abstratas.
Meu primeiro universo é o que guardo comigo, meu eu, mundo de dentro, onde guardo as memórias, o racional e o irracional, o lógico, o concreto, a finitude, o surreal e o sonho; onde eu traduzo, através de linguagens, a identidade de mim. Se vejo a escrita ou o desenho como a interpretação do que me habita, vejo minha carapaça como um refúgio de algo que canto, em verso ou em prosa.
As construções textuais ou imagéticas, por pequenas que
sejam, exigem vagar, contemplar, fruir, para depois, em um regurgito, descrever
sutil e minuciosamente, ou em rompantes de fúria e aceitação, o entendimento do
universo que cabe e não cabe em mim, como uma ínfima partícula da composição do
todo. Só há criação se há esse conhecimento e, por vezes, acedência de tudo
como parte de um todo.
Vivência, imaginação e recordação – o espaço do processo
criativo é uma intimidade quase promíscua comigo mesma. Interação nem sempre
simpática, nem sempre fácil ou fluente, mas é nesse tempo que as imagens se
formam, é quando os roteiros se alinham, os eixos se deslocam e se assentam, e
abancam as personagens da viagem. Esse desencadeamento recorrente de engrenagens
espaciais, temporais, vívidas, lúcidas, movimenta o fazer.
Em minha casa, de cômodos nem sempre cômodos, retiro das
gavetas e cofres, das prateleiras e móveis, as construções do ofício, tanto
textual quanto artístico visual. É um mergulho e, ou você aprende a nadar ou se
afoga. Ou se mostra, ou despenca para a invisibilidade.
Sou essa casa enquanto mulher, e essa mesma enquanto
escritora ou desenhista. Sinto ser impossível separar as duas, colocando-as em
lugares distintos, separando-me em pedaços, muito embora dentro de mim haja cacos
sem a possibilidade de colagem. Não conheço uma fórmula de me ausentar de uma
sem me ausentar da outra, de viver parte do dia com uma, e parte com outra.
Tanto no fazer literário quanto no fazer artístico, trabalho combinando as
duas, conciliando ambas nas propostas que me desafio a testar.
Há aqueles que conseguem deixar de lado a pessoa que são em
um ou outro ofício, não imprimindo no processo criativo parte significativa de
seu ser. Eu, contudo, espalho-me no que faço, fragmentada, multifacetada, e
deixo-me levar assim por quem quiser me ver.
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