Coluna Asas #53 - Krakoa: Refletindo sobre nossas bolhas sociais (Fil Felix)

 


Recentemente, o universo dos X-Men nos quadrinhos passou por uma repaginação pelas mãos do roteirista Jonathan Hickman, sendo sua principal mudança a criação de uma ilha-nação mutante: Krakoa. E lendo esse novo período, acabei me pegando refletindo a respeito das nossas bolhas sociais.

 

Explico: os X-Men são o símbolo máximo dentro dos principais quadrinhos sobre preconceito e diversidade. As pessoas que nascem com o “gene X” são mutantes e, consequentemente, o próximo passo evolutivo para a raça humana. Além de poderes, como manipular o clima ou telepatia, muitos mutantes nascem com características físicas diferentes dos humanos: corpo coberto por pelos, vários olhos ou braços, cor de pele que vai do azul ao verde, aparência animal, entre outras características que não os deixam passar despercebidos na multidão. Os mutantes, com o passar do tempo, acabaram sendo segregados da população, sofrendo preconceito e até mesmo passando por um genocídio, trancafiados em campos de concentração e perseguidos pelos Sentinelas, máquinas que identificam e caçam mutantes. E os X-Men, uma equipe de heróis mutantes, estão dispostos a salvar e proteger até mesmo aqueles que os prejudicam. Desde sua criação, nos anos 1960, a equipe vem sendo uma metáfora para preconceitos como o racismo, xenofobia e homofobia.

O status quo dos X-Men é encabeçado pelo Professor Charles Xavier, o maior telepata do mundo, e sua escola para jovens superdotados, que abriga e protege qualquer mutante que queira conhecer melhor tanto a si mesmo quanto seus poderes. Mas como comentei, em 2019 o roteirista Hickman tomou as rédeas das histórias X e recriou Krakoa: uma ilha viva e mutante que passa a servir de santuário para todos os demais mutantes do mundo. Xavier declara soberania da nação perante os outros países, proíbe a entrada de humanos e cria leis de proteção mutante, além de avisar: “não toleraremos mais ameaças”.

E apesar de não ser a primeira vez que mutantes se unem numa ilha (e todas as tentativas anteriores não deram certo), é a primeira vez que tomam uma atitude mais drástica e sem medo de retaliação. Aparentemente, Krakoa é um paraíso: auto suficiente, produz água e comida, possui defesas naturais, flores medicinais e até mesmo é capaz de reviver mutantes mortos. Mas ela esconde alguns mistérios. O Conselho Silencioso, a alta cúpula da nação, definiu certas regras um tanto… questionáveis. Como, por exemplo, que todos os mutantes são bem-vindos, exceto os videntes, aqueles que podem ver ou prever o futuro, pois podem revelar os segredos que envolvem Krakoa. Lembrei, claro, do clássico da literatura A Revolução dos Bichos, de George Orwell, em que os animais de uma fazenda se rebelam contra seus donos e estabelecem uma nova sociedade, com novas leis, sendo uma delas que “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que os outros”. O livro aborda questões como a corrupção sendo inerente a todas as sociedades, assim como os privilégios. E Krakoa parece não ser tão diferente.

Trazendo o tema para a nossa realidade, um termo que está bastante em alta nos últimos anos é o das “bolhas sociais”, uma espécie de evolução para os antigos clubinhos e tribos. Se antigamente tínhamos grupos de roqueiros, nerds, gamers, patricinhas e por aí vai, hoje em dia eles estão cada vez mais afunilados e segregados. São os nerds de esquerda, os nerds de direita, os escritores que criticam literatura hot, os escritores que fazem literatura hot, e por aí vai. E num mundo cada vez mais digital, tudo à volta reflete nossa “bolha”.

Estamos cercados de pessoas que pensam como nós, agem como nós, até mesmo gostam das mesmas coisas que nós. O Facebook e o Instagram indicam páginas e produtos de coisas que acabamos de comentar, para que continuemos no mesmo nicho (culpa do tal dos algoritmos) e, em paralelo, nos distanciamos daqueles que pensam diferente. Aí você deve citar: mas discurso de ódio não é opinião. Não, realmente não é! Mas se afastar de quem pensa diferente nem sempre é para manter nossa paz e integridade. É interessante se pensar como simplesmente somos intolerantes com certas coisas. E não precisa ir longe, às vezes é só com o funk que toca ali do lado.

Um dos problemas de se viver numa dessas bolhas é que podemos nos cegar para o que acontece lá fora, para o real problema, camuflando ou colocando debaixo do tapete certos assuntos. Em época de eleição, então, é um salve-se quem puder, porque percebemos a fragilidade do nosso círculo. E recentemente venho pensando muito a respeito devido algumas situações que vivi e presenciei, o choque de realidade que tive ao entrar em contato com o lado de fora da minha bolha.

Eu me cerquei de pessoas que são, em algum grau, parecidas comigo. E me distanciei daquelas que são diferentes. Já cheguei a ouvir da boca de parentes coisas como “gays são abominação”, geralmente pessoas que também estão dentro de suas bolhas e, nesse caso, ignorantes ao que acontece fora do seu meio evangélico, apoiador de Bolsonaro e das teorias da conspiração; uma bolha clássica. Acabei me distanciando dessas pessoas e me aproximando de outras, passando a viver num meio que me aceita, algo que até explica minha saída tardia do armário para certos familiares.

E recentemente, quando pensei que isso não me perseguia mais, percebi que minha homossexualidade é invisibilizada pelos meus familiares. Meu relacionamento é invisibilizado. Não é comentado, levado a sério, nem nada. Mas sim tapeado, “discreto”, não podendo dar o nome aos bois, já que deixam todos desconfortáveis. E apesar de não sentir na pele o preconceito físico que acontece lá fora, como já aconteceu com amigos próximos e como vemos nos noticiários, percebi que saí do armário, mas minha família ainda não saiu. E acredito que isso seja uma questão que acontece com muitos. E não digo só de pai e mãe, mas família como um todo.

A classe LGBTQ, que muitas vezes até brincamos porque a sigla não para de crescer, tenta abraçar todos esses que, de alguma maneira, são invisibilizados pela sociedade e pelas suas próprias famílias. Mas como ocorre em Krakoa, nossa comunidade LGBTQ também esconde alguns problemas, como machismo ou preconceito contra as pessoas trans ou bissexuais. A intolerância, infelizmente, está em todo lugar. E não quero parecer impessoal no artigo: admito minhas próprias intolerâncias e preconceitos, também. Descobri que parte do problema da minha família ainda estar no armário é porque, em algum nível, eu também ainda estou e temo pelo julgamento alheio. E como comentei no início do texto, lendo essa nova fase dos X-Men, apesar de parecer um absurdo à primeira vista, me veio à cabeça nossas bolhas sociais. Até que ponto ela é boa o suficiente em nos proteger dos problemas externos ou, melhor, até que ponto ela nos permite assumir que não queremos ver o que acontece lá fora. Existem bolhas boas e bolhas más?

Não sei se consegui me fazer entender, mas aproveitei o espaço para desabafar algumas reflexões que venho tendo. E citando outra obra que gosto muito, Tieta do Agreste: que a gente possa sempre segurar nossa vida pelos chifres, tomando a rédea e sendo nós mesmos, livres e felizes! E dia após dia, que sejamos menos intolerantes com o próximo, para não chegar ao ponto de nos refugiarmos numa ilha.

Aliás, essa nova fase dos X-Men está muito boa e super recomendo a leitura! Está saindo no Brasil pela editora Panini e você pode conferir uma super análise que fiz do nascimento de Krakoa no review X-Men: Dinastia X/ Potências de X!

 


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