Coluna Asas #52 - Não deixe o punk morrer (Davenir Viganon)

 


O cyberpunk é meu subgênero favorito da Ficção Científica, desde que vi pela primeira vez (quando era um guri nos anos 90) aquele mundo escuro de Blade Runner, cheio de riqueza e pobreza coexistindo em caos. Com o passar do tempo, surgiram muitos gêneros derivados dele; o primeiro, o steampunk, foi criado pelos próprios expoentes do cyberpunk, William Gibson e Bruce Sterling, mas algo se perdeu nas quatro últimas décadas.

 

Antes de externar minha quase indignação/lamento, vamos desmontar um pouco essas engrenagens, ou chips se preferirem. O cyberpunk que conhecemos surgiu nos anos 1980 nos EUA, como um movimento literário na Ficção Científica. Referiam-se a si mesmos apenas como O Movimento e buscavam novos ares para o gênero, contrapondo-se à Era de Ouro da Ficção Científica, marcada por heróis virtuosos, conquistando o espaço, combatendo monstros como William Gibson criticou em seu conto, The Gernsback Continuum, de 1981. Nesse conto, um fotógrafo encontra-se com um casal, esteticamente muito parecidos com personagens de Flash Gordon, série que representa bem a FC que os cyberpunks buscavam contrapor. O fotógrafo do conto refere-se ao casal como algo saído de um pôster de propaganda nazista. Os cyberpunks buscavam novos caminhos para a FC, que incluíssem falar de sexo, política e drogas abertamente, pelo prisma das ciências sociais e humanas, não apenas das ciências exatas.

A rebeldia e a atitude dos punks são os elementos cruciais do que viria a se chamar cyberpunk. O termo é uma mistura, a grosso modo, da palavra cyber, que remete a tecnologia e punk, no sentido de pessoas marginalizadas da sociedade, impressas no lema “High Tech, Low Life”. Uma atitude desacreditada em um mundo que se pauta na alta tecnologia e baixa qualidade de vida. Expor essas contradições sociais, por meio da pervasividade da tecnologia é o centro da abordagem política do cyberpunk. Passadas quatro décadas, o cyberpunk acabou se tornando realidade em muitos aspectos.

No início dos anos 90, os dois maiores expoentes do cyberpunk, lançaram A Máquina Diferencial. Uma obra retrofuturista numa Inglaterra vitoriana, ou seja, recriou um momento do passado (o sucesso do invento de Charles Babbage, por exemplo), caso algo acontecesse diferente de nossa história. Na obra, ainda se fazem presentes os elementos de rebeldia e a relação com a tecnologia. O nome steampunk fazia sentido na obra, pois ela guarda muitas semelhanças na essência com Neuromancer, obra essencial do cyberpunk.

Tanto o cyberpunk quanto o steampunk extrapolaram os limites da literatura. A estética cyberpunk dominou o cinema de ação, de Blade Runner a Matrix, e a estética oitentista de uma maneira geral. O steampunk, se não tão famoso, trilhou um caminho que, na literatura, o aproximou da Fantasia, e ganhou espaço entre cosplayers encantados com a estética (neo)vitoriana. Algo se perdeu. A estética suja de fuligem e fumaça dessa Inglaterra vitoriana que nunca existiu tornou-se algo limpinho e elegante, que em nada tem da atitude e rebeldia punk, que Gibson e Sterling escreveram em A Máquina Diferencial. É triste ver o sufixo punk em algo que muitas vezes não tem nada de punk. Estética pela estética. Poderia ser apenas retrofuturismo e não haveria nada de essencialmente errado nisso.

Contudo, nem tudo está empapado de beleza e estilo. Especificamente na literatura, podemos acompanhar várias obras brasileiras de steampunk que mantêm viva a rebeldia, a contestação e a atitude que fazem jus ao punk desse subgênero tão amado. Mais especificamente ainda, as obras steampunks de Eneias Tavares, A. Z. Cordenonzi e Nikelen Witter. São histórias retrofuturistas, cheios de personagens marginalizados com destaque e respeito, escritos com habilidade e referências histórias que deixam maravilhado este historiador que vos escreve. Tudo isso sem perder a atitude e a rebeldia que me fazem gostar tanto dessas visões semeadas, há quarenta anos, por Gibson e Sterling. Concluo clamando aos leitores e escritores que não deixem o punk morrer como um sufixo vazio.

Comentários

  1. tenho pouca leitura em o que é punk e o que é core, mas eu acho que os dois se aproximam nas suas diferenças do normativo. Fiz a leitura do texto e... Davenir, você acha que o punk perdeu mesmo todo o significado? Concordo que muitas expressões atuais não têm mais a atitude adversativa que tinha o punk de antes, mas eu vejo o punk nessas demonstrações de hoje como um desafio ainda ao que é a sociedade. O solarpunk mesmo, é uma expressão de desafio à norma do hoje, mas de maneira mais timista e gregária, tentando, então, focar nos aspectos gregários da sociedade, como no steampunk, mas no todo sendo uma negação ao que se propõe hoje pra sociedade, como no cyberpunk. Qual tua leitura desse movimento?

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  2. Olá, Júlia.
    Muito obrigado pela tua leitura atenta e seja bem vinda! Respondendo a sua pergunta. Não acho que o punk perdeu o todo o significado. Os punks de verdade ainda andam por ai, apenas não como sufixos de subgêneros literários de Ficção Científica. Especificamente, na literatura, infelizmente a rebeldia dos cyberpunks foi diluída ora por sátira. A maioria das histórias cyberpunks hoje ou são sátiras ou congelaram-se na estética oitentista, parece que desistiram do futuro.
    O steampunk misturou-se a fantasia, o que não acho ruim. Os autores gaúchos que elogiei, fazem isso mas sem perder a rebeldia. Juca Pirama do Eneias Tavares é rebeldia pura, mas também aponta caminhos. Mas tem muitos exemplos de stempunks que são apenas variações de fantasia, sem compromisso algum com nosso amado sufixo.
    Quando ao Solarpunk, não abordei para que o texto não ficasse grande demais. Deste adoro o aspecto gregário e otimista, pois as histórias no geral, tentam ver algo além das distopias (como a maravilhosa Ursula Le Guin, fez). Gosto tanto do Solarpunk que penso que podia descolar-se desse sufixo punk, pois é como se fosse apenas um subproduto do cyberpunk, quando podia ser muito mais.
    Admito que me senti um velho ranzinza, escrevendo esse essa coluna, não é meu normal. Contudo, não acho que a rebeldia, no sentido agressivo mesmo, deva ser abandonada, mesmo quando se propõe caminhos mais construtivos. Sinto muita falta daquela raiva. Deve ser o isolamento.

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    1. Entendi! A rebeldia e destruição àquilo e daquilo que nos destrói realmente é algo que chama. Sempre me aproximei do sufixo punk mais pela rebeldia ao atual do que pela destruição, mas a verdade é que, no fundo, no fundo, não à destruição sem algum tipo de violência. Um bom texto, mesmo que ranzinza.

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