Coluna Asas #43 - Palavrório - (Bruno de Andrade)

 



Ligo o laptop para imergir em minha história policial. O detetive me aguarda na página quarenta e sete, observando o corpo da garota que podia ser sua filha, segurando o nó na garganta sob a fina chuva de mais uma noite fria da metrópole. Então elas atacam. Não ao detetive, mas a mim, o autor. Fogem da tela e começam a dançar em frente aos meus olhos. Elas, sempre elas. Minhas amantes e algozes. As palavras.


Sempre gostei de imaginar que as palavras têm personalidade. Um redemoinho já informa no nome que não há de causar tanto estrago quanto um furacão. O doce, com esse cê deslizante na boca, anuncia em sua fonética que é mais agradável que o amargo, que termina com um gê engasgado na garganta. Já o azedo prenuncia seu sabor zunindo um zê de azedume logo no começo. Eu avisei, diria ele para sua careta.

Por outro lado, a dor, palavrinha lacônica, não parece dar conta de sentimento tão impetuoso. Então nos resta o grito, o choro, o desespero, um rosário de agouros tentando aplacar em sílabas a extensão do sofrimento. Já a solidão, que se anuncia tão presente, vem com o silêncio que nenhum aumentativo é capaz de preencher.

A grande graça é que as palavras são voláteis, manipuláveis. Basta uma vogal para separar o moral do imoral e não há nada que ele possa fazer para cobrir sua vergonha. Um simples prefixo e transformamos a ordem em desordem, desorganizamos tudo o que foi meticulosamente organizado em séculos de construção léxica.

Eu, sadio sádico que sou, gosto de reunir todas as palavras personalizadas numa caótica confraternização cacofônica em minha mente. Então me ponho a observar o curioso convívio desses serezinhos de múltiplos significados.

O Pulular, com seus eles pululantes, reina absoluto no meio do salão. A ele se juntam a Lantejoula, o Paralelo, a Ilegalidade e logo está formada uma dança louca de estalos linguísticos saltitando no mesmo ritmo alucinado. Já o Ensimesmado, que há de ser mesmo muito do ensimesmado, fica no sozinho no cantinho, fechado em si mesmo como deve ser.

O Porquê tropeça trôpego, todo atrapalhado, tentando se juntar quando separado e toda hora perdendo seu chapéu. A Manga e o Banco não se entendem com suas várias personalidades. O Pé, notório pé-de-valsa, é o parceiro de dança mais disputado. Conduz, sem ser pego pelo Contrapé, desde o Moleque até a Cabra. Mas a reles rasteira Rasteira rasteja em seu caminho, restando apenas o Caos instalado no meio do salão.

A ágora agora vira balbúrdia barulhenta. Inconstitucionalissimamente exibe seu corpanzil corpulento, desconstituindo a Constituição, que cai em paixão acachapante. O Dó lamenta sua falta de compasso enquanto perde o passo da música em dó maior. Diferente de Ré, que brilha fazendo moonwalk. Si e Lá enfadam o Fá, que acha a discussão um grande mimimi. Mi não concorda. Sol fica quieto, que é para não esquentar a discussão.

Discurso discursa e Ninguém ouve. Todos atentos, menos a Atenção. Há uma tensão no ar. Uma tensão noir. Tudo muda, embora Tudo continue o mesmo, sem entender patavina. Patavina foi assassinada. Entra o detetive.

Não, espera. Essa é outra história. Lembro que tenho que escrever. Onde mesmo que eu estava?

A festa nefasta desinfesta da minha mente. É hora da vingança das palavras. Melhor não esperar com paixão. Preciso resolver o imbróglio desse palavrório.



Imagem: "Typewriter", de Birgit Böllinger, no Pixabay.


Comentários

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  2. fernanda caleffi barbetta13 de março de 2021 às 12:25

    Que delícia ler um texto criativo e inteligente como este. Ótimo que teve essa bela ideia e a desenvolveu de forma brilhante. Parabéns. Beijo.

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