Coluna Asas #39 - Cisma - (Catarina Cunha)


A memória olfativa é um troço interessante. Tem gente que enche os olhos de água ao sentir cheiro de pão-de-queijo, que remete à infância nos confins de Minas. Outros ficam bolados com o cheiro do mar, com ou sem maresia. Mesmo morando há quinhentos quilômetros do oceano, não podem ver um copo com água e sal que o coração dispara. 

Há quem consiga sentir o gosto da terra molhada só pelas ventas. Mas tem também os exóticos, que não resistem ao cheiro de eletrodoméstico ou livro novo, cafungam até espirrar.  Eu sou mais simples, gosto do cheiro de cimento e asfalto molhado depois de uma chuva de verão. O cheiro combina com o mormaço que sobe da água correndo pelo meio fio em busca de escape. Gosto dessa coisa urbana, complexa em seu auto aprisionamento. 

Tão truncado quanto é sentir aversão a certos aromas. Alguns são compreensíveis, como decomposição e excrementos. Outros sutis, como sentir enguio diante de um pêssego ou um inocente quiabo. Meu nariz não é elitista, pois tenho horror a qualquer perfume, de Chanel nº5 a Axe.  Desenvolvi até uma alergia providencial. 

Nosso cérebro é cheio de melindres e gatilhos contra qualquer suposta ameaça ativando os sentidos de autopreservação. Na dúvida se a ameaça é real ou não, melhor reagir. 

E por falar em reação, venho sentindo um cheiro antigo, a cada dia mais presente. Uma memória olfativa que gostaria de esquecer. Algo enjoativo e peçonhento com retrogosto amargo. Minhas narinas ardem e tentam identificar o foco da fedentina, mas parece vir de todo lugar.  

Fazia muito tempo que o ar não exalava esse fedor de ditadura.  

Comentários

  1. Sensacional, Catarina!
    Arremate perfeito a um texto impecável! Parabéns!

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