Coluna Asas #37 - Por que amo Jane Eyre de modo incondicional - (Priscila Pereira)

 


Aviso: o texto pode conter spoiler.


Conheci o maravilhoso livro de Charlotte Brontë quando ainda era adolescente, mas minha bagagem literária me ajudou a entender e me apaixonar por esse clássico da literatura inglesa do século XIX. Li várias vezes depois de adulta e em todas ainda sinto a mesma coisa que senti pela primeira vez.

Jane Eyre nos é apresentada em primeira pessoa, o que torna a personagem extremamente real logo no início do livro, ainda criança, órfã, rejeitada, feia, espirituosa e com um temperamento sanguinário. A história é contada de um modo cru, sem enfeites ou eufemismos, muitas vezes dura e amarga, a realidade de uma menininha que não tinha nada nem ninguém no mundo e como seu espírito e caráter foram forjados na escola/orfanato para a qual foi mandada pela tia que queria se livrar dela.

Mesmo em meio à dura realidade, o livro tem uma agilidade e um trato com a narrativa que fica impossível parar de ler, nos instiga a continuar mergulhando na vida da protagonista, que foi desenvolvida brilhantemente pela autora. Todos os aspectos, detalhes, meandros, das emoções, reações, pensamentos e ações de Jane Eyre foram incorporados na história, tornando a personagem riquíssima.

Uma das cenas mais tocantes é, ainda no orfanato, a morte da melhor amiga de Jane, Helen:

“Quando acordei, era dia. Um movimento incomum me despertou. Ergui o rosto. Era a enfermeira, que me carregava no colo. Ela me levava pelo corredor, em direção ao dormitório. Ninguém brigou por eu ter saído da minha cama. As pessoas tinham outros assuntos com que se preocupar. Ninguém respondia às perguntas que eu fazia. Mas um ou dois dias depois fiquei sabendo que a Srta. Temple, voltando para o quarto ao amanhecer, me encontrara deitada na cama de Helen Burns, meu rosto em seus ombros, meu braço em torno de seu pescoço. Eu dormia - e Helen estava morta.”

A história, mesmo dramática, tem seu lado doce, e Jane se torna uma jovem sensata, inteligente e íntegra, além de cheia de entusiasmo pela vida e pelo amor, e  mesmo que houvesse sido privada dele a vida toda, tinha o sonho de alcançar um amor romântico e uma família. 

A vida de Jane muda quando decide abandonar a escola, onde já trabalhava como professora e colocar um anúncio no jornal como preceptora. Aí vemos a astúcia de Charlotte ao usar a própria história como preceptora para ilustrar seu livro e enriquecer ainda mais sua narrativa. A história de Jane tem muito da história da Charlotte, o que nos mostra que colocar um pouco de nós mesmos em nossos personagens ajuda a deixá-los mais verossímeis e empáticos.

Minha parte favorita do livro, não podia deixar de ser, é o romance entre Jane e o Sr. Rochester. Esse, um anti-herói perfeito, bem mais velho do que ela, feio, baixinho, com modos rudes e virtude questionável, mas, muito inteligente e espirituoso, alimentava o espírito curioso e criativo de Jane, a tratava como igual, mesmo sendo uma empregada da casa, nos leva a torcer pelo desenrolar da história de amor deles. 

História essa que a autora foi feliz em esconder, camuflar com meios divertidos e leves, dando um ar alegre e fugaz ao texto, até o ápice ser revelado, mostrando a sensibilidade e o espirito feminista, muito a frente do seu tempo, da autora.

“ - Mas agora eu lhe digo que devo ir! -  retruquei, a emoção me tomando. - Acha que vou ficar, sabendo que já não vou significar nada para o senhor? Pensa que sou um autômato? Uma máquina sem sentimentos? Que posso suportar ver minha única migalha de pão ser tirada da boca, a gota d'água derramada do copo? Acha que, só por ser pobre, obscura, feiosa e baixinha, sou uma pessoa sem alma e sem coração? Está enganado! Tenho tanta alma quanto o senhor… e muito mais coração! E se Deus tivesse me presenteado com mais beleza e fortuna, eu teria feito com que fosse tão difícil para o senhor me deixar quanto é para mim deixá-lo. Não me dirijo ao senhor agora através de normas e convenções, nem ao menos através da carne mortal. É meu espírito que se dirige ao seu. Como se ambos tivessem cruzado o limite da morte e estivéssemos, aos pés de Deus, como iguais… que é o que somos!” 

” - Minha noiva está aqui -  disse, puxando-me para si - porque aqui está minha igual, minha alma gêmea. Jane, você quer se casar comigo?

Continuei sem responder, ainda tentando me desvencilhar de seu abraço. Continuava incrédula.”

E quando as juras de amor são feitas, o casamento preparado, tudo se desenrolando maravilhosamente e ainda falta um pouco menos da metade do livro, sabemos que as chances de tudo se resolver agora são nulas e quando estão prestes a dizer o sim na igreja, um segredo que é alimentado de forma lenta, em banho-maria, é revelado como uma bomba e destrói os planos e sonhos de Jane.

De uma forma original e criativa, ainda mais para a época, Charlotte revela que o Sr. Rochester já era casado e que sua esposa tinha enlouquecido nos primeiros anos do casamento e fora trancada no andar de cima da mansão da família. 

Jane, como uma criatura de moral e costumes elevadíssimos, em meio a uma crise filosófica, decide abandonar o Sr. Rochester que ofereceu uma união não abençoada por Deus. E sua escolha quase a leva a morrer de frio e fome, vagando pela  região em busca de um trabalho honrado. 

Nesse meio tempo Jane vai parar na casa de pessoas caridosas que cuidam dela e conseguem um emprego de professora, e se tornam sua família, primeiro pela amizade e depois por meio de uma coincidência que a autora usou e abusou nessa parte da trama. Jane descobre que seus amigos são na verdade seus primos e que um de seus tios, morreu e deixou sua fortuna para ela, que dividiu com os primos. 

E a vida conturbada de Jane mais uma vez dá uma reviravolta quando seu primo decide  fazer missões na Índia  e quer levá-la como esposa. Jane se desespera e vai atrás de seu verdadeiro amor.  De forma surpreendente e muito conveniente, ela encontra o Sr. Rochester viúvo, cego e sem o movimento de uma das mãos, por causa de um incêndio que sua esposa louca causou. 

Então, enfim, Jane se casa e vive um amor intenso e cheio de companheirismo e cuidado e constrói uma família numerosa e feliz. Sempre gostei desse final, agridoce, onde o “mocinho” está estropiado, mas mesmo assim, o amor puro da heroína não vê limites e se acha abençoada e satisfeita, quando outras mulheres o recusariam horrorizadas. 

Quando terminamos, ficamos com aquela sensação de vazio, de como quando se perde o contato com um amigo querido e não conseguimos mais saber sobre a vida dele. É isso o que Charlotte conseguiu, eternizar Jane Eyre como uma das personagens mais ricas e vivas da história da literatura e tudo isso em uma época onde as mulheres não tinham nem voz nem visibilidade. 

Vida longa à Jane Eyre!

Todo o reconhecimento e admiração à Charlotte Brontë!

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