Coluna Asas #32 - Há um morcego pairando Gotham City - (Fil Felix)

 


Essa semana li um artigo muito interessante escrito pelo Eduardo Selga, trata-se de “Há um Abismo na Porta Principal”, publicado no livro Cultura e Imperialismo Americano (2015), uma coletânea de artigos que discutem a indústria cultural, a hegemonia americana e suas consequências a partir de temas contemporâneos.

No artigo do Selga, ele utiliza a figura do Batman para falar sobre e também como representação espetacular do imperialismo americano. A partir do status quo clássico do herói mascarado, criado em 1939 pelo roteirista Bill Finger e pelo desenhista Bob Kane, o autor destrincha questões como terrorismo, oligarquia e fascismo. E o ponto de partida para essa discussão é a polêmica música “Gotham City”, escrita por José Carlos Capinam e Jards Macalé. Lançada em 1969, a música seria defendida por Macalé naquele mesmo ano no IV Festival Internacional da Canção, sendo vaiada pelo público. Na letra temos um habitante de Gotham City narrando as mazelas da cidade, seu céu alaranjado, a caça às bruxas nos telhados e até mesmo sobre um sinal nos céus que combate o mal. Era uma crítica alegórica sobre a ditadura militar, mas que não foi muito bem captada pelo público jovem da época. Confira um trecho:

 

Só serei livre se sair de Gotham city

Agora vivo como vivo em Gotham city

Mas vou fugir com meu amor de Gotham city

A saída é a porta principal

 

E sobre essa saída pela porta principal, o refrão emblemático diz:

 

Cuidado! Há um morcego na porta principal

Cuidado! Há um abismo na porta principal

 

O Batman ou, como também é chamado, o Cavaleiro das Trevas (apelido bastante apropriado, como é dito no artigo), é esse grande abismo que nos aguarda na saída de Gotham. E é aqui que entra a parte que nos interessa, essa visão de que o Batman salva e ao mesmo condena sua própria cidade. O que nos leva ao dilema clássico que assombra Gotham e o universo dos heróis há tempos: os super-vilões existem porque os super-heróis existem? Dilema que foi comicamente tratado na animação LEGO Batman: o Filme (2017): o desejo do Coringa de ser reconhecido como o maior inimigo do Batman, quase que implorando para ser visto. E quando o Batman finge que ele é apenas um dos inúmeros vilões da cidade, esnobando-o, o Coringa fica mais irado. E num cenário em que os vilões dominam tudo, o próprio Coringa não sabe lidar com a ausência de um Batman sobre os telhados. Uma sátira dessa dependência um do outro.

No artigo, Selga faz um paralelo entre o Homem Morcego e a sociedade descrita no livro 1984 de George Orwell, onde as pessoas são constantemente vigiadas pelas autoridades sob a propaganda política “o Grande Irmão está te observando" (Big Brother is watching you, no original em inglês). E um ponto interessante é quando ele reforça o poder e monopólio das Indústrias Wayne, o conglomerado herdado por Bruce Wayne, como a oligarquia que domina a cidade. Nos quadrinhos, mesmo nas histórias mais recentes, temos vários exemplos de como Gotham City é extremamente vigiada pelo Batman, com câmeras em todos os lugares, batmóveis escondidos em pontos estratégicos e até mesmo torres que possuem um vasto arsenal e que funcionam quase como o Megazord dos Power Rangers (como na história Noite dos Homens-Monstro, de 2016). Já a recente Seus Projetos Sombrios, de 2020, descobrimos que Bruce Wayne possui um grande projeto para Gotham, pretendendo reformular toda a cidade, proporcionando maior segurança e paz para os habitantes, o que incluía uma prisão de segurança máxima para super criminosos, substituindo o nada seguro Asilo Arkham. Além do projeto, também possui os meios para tanto, afinal de contas ele consegue financiar todos os equipamentos, armas, trajes, carros e outras parafernalhas do Batman somente com uma parte de sua fortuna, que passa despercebida nas receitas, então imagina o quanto de dinheiro as Indústrias Wayne possui! Essa fortuna, inclusive, é abordada na história seguinte, A Guerra do Coringa, quando o vilão consegue pôr as mãos no dinheiro dos Wayne, assim como a mansão e as empresas associadas, criando seu próprio projeto para Gotham, deixando a cidade um caos.

Podemos dizer que enquanto figura pública, Bruce Wayne mantém e controla praticamente toda a economia que circula em Gotham, sendo um executivo, celebridade e filantropo. Enquanto que de noite, sob as vestes do Batman, ele ronda a cidade e combate o crime e os super-vilões. E mesmo assim, Gotham continua sombria, problemática e violenta, berço de alguns dos mais caricatos e psicóticos personagens dos quadrinhos. E de maneira mais ou menos direta, o Batman é a própria Gotham City. Vale comentar que em 2016, quando a DC fez uma espécie de reset em seu universo de heróis (o Renascimento ou Rebirth, no original), o primeiro arco de histórias da revista do Batman foi intitulado justamente de “Eu Sou Gotham”. E essa dualidade faz parte de seu status quo, algo que o torna um dos heróis mais ricos e interessantes para se debater (e um dos meus preferidos!).

 Mas voltando ao livro Cultura e Imperialismo Americano, mais especificamente no artigo de Eduardo Selga, temos essa perspectiva dos EUA como um predador cultural, que subjuga a cultura de outros povos, surgindo como uma esperança para o buraco que eles mesmos criam. Conceito que pode se estender e abranger outros pontos que nos é interessante nesse texto, como o Patriot Act: a Lei Patriótica criada logo após o atentado às Torres Gêmeas em 11 de Setembro de 2001, que permite os órgãos da inteligência americana de rastrear e interceptar e-mails e ligações privadas, sem interferência jurídica. Na época, era dito que certas invasões de privacidade são necessárias para fins anti-terroristas, o que gerou (e continua gerando, conforme a lei é reformulada com o passar dos anos) várias polêmicas. Quase que “o Grande Irmão está te observando” da vida real, não é mesmo? E não muito diferente do que o Batman faz em Gotham.

 Desde a clássica graphic novel Watchmen, escrita pelo Alan Moore em 1986, que nos perguntamos “quem vigia os vigilantes?” (Who watches the watchmen?, no original em inglês) para refletir a respeito das posturas dos super-heróis, tidos como portadores da moral e salvadores da pátria, a que tudo é permitido. Soa um pouco exagerado comparar o Batman ao terrorismo, ou tê-lo como símbolo do Imperialismo Americano, como defendido por Selga em seu artigo. Afinal de contas é o nosso herói noturno, herdeiro da família mais rica da cidade, traumatizado pela morte dos pais e que utiliza de seu dinheiro e influência para tornar Gotham um lugar melhor. Mas até que ponto a comparação é tão exagerada assim?

Esse organismo simbiótico entre heróis e vilões é muito presente nas histórias em quadrinhos americanas, ao melhor estilo “o ovo e a galinha”: em que não sabemos onde começa um e termina o outro, quem depende mais de quem, quem surge a partir de quem; questões que dão muito pano pra manga. E com certeza podem e continuarão a servir como meios para entender a indústria cultural e a sociedade, mesmo sendo filho de ambas, assim como é literatura e entretenimento.

Enquanto isso, fica a dica: não passem por Gotham City!

 

Cuidado! Há um morcego na porta principal

Cuidado! Há um abismo na porta principal


Comentários

  1. Bem pontuado. A linha tênue que separa Batman do bem e do mal é frágil. Eu sempre o enxerguei como um anti-herói. Sombrio, psicopata controlado, manipulador sutil. Ele é, sim, Gotham em todas as suas nuances. Não há esperança em Gotham. E mesmo assim, por esse aspecto, tão humano desumano, ele se sobressai nas minhas escolhas. Talvez eu me reconheça em alguns aspectos kkkk Vai saber...

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  2. O Batman é quase um personagem literário que ocupa seu espaço não na literatura, e sim na cultura pop, especificamente nas HQs e no cinema comercial. Digo isso por ser vasto em nuances, ao contrario da acentuada linearidade dos super-heróis. Mas, Fil, o fato de ele ser um traumatizado e ter boas intenções não elide os seus significados enquanto personagem, posto que os símbolos são inerentes aos personagens, eles tenham ou não consciência disso. Ademais, o que é "tornar Gotham um lugar melhor" da perspectiva do ricaço que Bruce Wayne é, não obstante o trauma? Aliás, falando em doença, é representativo que tanto o Batman quanto seus supervilões sejam desequilibrados emocionais: Gotham é um hospício a céu aberto, o que também é um elemento simbólico.

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