Coluna Asas #29 - Sobre livros e pedras - (Giselle Fiorini Bohn)



Outro dia, fui convidada a entrar em um grupo de amantes da literatura, cheio de escritores, ou assim supus. A primeira postagem perguntava o que havia de mais irritante na atual produção literária brasileira. Apesar de sentir que parecia haver ali uma provocação, eu, ingênua, lendo os vários comentários sobre “a praga da autoficção” e “o povo que acha que é escritor só porque autopublica um e-book de ficção científica ou de fantasia na Amazon”, entre outras pérolas, corri a dizer que, para mim, nada era irritante. Justifiquei que escrever no Brasil já era tão desafiador e frustrante que a última coisa que precisávamos era que nós, que ousamos escrever em ambiente tão inóspito, ficássemos torcendo o nariz uns para os outros.

Má ideia; aliás, péssima: fui apedrejada por todos os lados. Tentei me defender, mas logo desisti, e saí do grupo no dia seguinte ao que entrei. Minha frágil saúde mental não resiste muito tempo a discussões passionais com estranhos. 

E então fui convidada pela querida Bia Machado a escrever esta coluna, e, esfregando as mãozinhas em excitação, pensei que agora, sim, eu teria a plataforma ideal e poderia dizer o que não disse lá, pois se ou quando vierem me atacar aqui, já estarei longe! 

Voltando à minha resposta, nada de fato me incomoda na atual produção literária brasileira, e a razão está na própria frase: há uma produção, estamos produzindo, os produtos dos nossos esforços estão aqui. Não me interessa se há, como dizem os experts das redes sociais, uma legião de escritores “ruins” produzindo coisas “ruins”. Na minha (nada) modesta opinião, ruim mesmo é quando não se produz nada, quando estamos todos tão desestimulados que nem ao trabalho de escrever nos damos. Ruim também é um mercado literário onde só tem vez e voz meia dúzia de escritores queridinhos do panteão da crítica literária. Ruim é ainda uma sociedade onde um grupo da elite decide o que é “alta literatura” e o que deve ou não ser publicado. Ruim é, finalmente, colocar a fantasia, a ficção científica, a autoficção, a literatura erótica ou sei lá mais o quê em uma caixinha relegada ao desprezo. Podemos ter no Brasil, neste exato momento, pessoas do calibre de J. R. R. Tolkien, Isaac Asimov, Ernest Hemingway, Anais Nin – para mencionar apenas um bom representante de cada um dos gêneros citados –, que talvez emudeçam ao se depararem com as críticas ácidas dos grandes especialistas formados na Universidade Twitter com doutorado no Facebook. 

Isso significa que não haveria, realmente, pessoas sem bagagem literária se metendo a escrever? Claro que há. Mas a pergunta que faço é: isso é ruim? Então deveríamos, por exemplo, desprezar também a obra de Carolina Maria de Jesus, ou mesmo de Lima Barreto? Alguém ainda questiona a qualidade literária das obras desses autores? Seria o número de anos passados em sala de aula ou o de livros lidos que define o bom escritor? Para mim, esse é um pensamento, na melhor das hipóteses, prepotente, quando não absolutamente elitista e discriminatório.  

Obviamente, não há como negar que uma simples observação do mercado editorial – não só o brasileiro como também o mundial – revela fórmulas prontas; vide a profusão de livros apregoando a ideia do “dane-se tudo”, ou romances, tanto os românticos quanto os eróticos, nos moldes de um Jane Eyre moderno, com protagonistas masculinos poderosos mas atormentados e femininos com mocinhas ingênuas e salvadoras. Mas não vejo isso como um problema; antes, vejo como a consequência natural de um quadro que, por si só, já é positivo e democrático: podemos todos hoje escrever e publicar nossos livros. Entre um cenário onde se publica pouco e apenas o que alguns consideram “alta literatura” – e lembrando que esse é um conceito muito discutido e sobre o qual não há consenso – e um onde se publica muito de tudo, fico com o segundo.

Encerro com um chamado que reconheço ser, de certo modo, pueril: gostaria de ver uma maior irmandade no meio literário. Quero apoiar a escritora de hot do mesmo jeito que o escritor de ficção científica apoia a poeta que apoia o escritor de terror e assim por diante. Já temos um governo que claramente despreza a cultura; será que precisamos mesmo desprezar uns aos outros?

Pronto, falei. Que venham as pedradas.




Imagem de domínio público, site Pixabay.

Comentários

  1. Oi, Giselle! Ótima discussão, no podcast que você tinha participado também falaram sobre essa importância da publicação independente ter democratizado o escritor, além de libertá-lo das editoras. Isso, junto do aumento das editoras pequenas, acaba dando voz a todo mundo. Se são livros bons ou ruins, aí cabe ao leitor ler e dizer.

    O preconceito, infelizmente, está presente em todos os meios, nichos e comunidades. Ninguém se entende. Na literatura, o pessoal vira o olho para as publicações eróticas, as premiações ignoram os livros de fantasia e por aí vai.

    Uma outra questão que acho bastante válida é aceitar que tá tudo bem ler um livro só pra se divertir, puro entretenimento, não precisam ser todos profundos e cheios de crítica. Mas é difícil, ainda estou no processo dessa aceitação kkkk

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    1. Oi, Fil! Acredite se quiser, só vi este seu comentário agora, em julho! 🤦‍♀️ Obrigada pelo retorno! Sim, deixemos para o leitor a tarefa de julgar o escritor, não é? Não precisamos atirar pedras uns nos outros! Um beijo!

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    2. Oi, Fil! Escrevi esta crônica em fevereiro e só agora vi seu comentário - por pouco ele não fez aniversário! :)
      Sim, concordo com tudo o que vc disse, e destaco esta frase: "Se são livros bons ou ruins, aí cabe ao leitor ler e dizer."
      Exatamente.
      Um abraço, amigo, e obrigada - ainda que tão tardiamente! - pela leitura.

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