Coluna Asas #26 - Os dois "bons gostos" - (Eduardo Selga)


Num tempo recente na literatura brasileira, em que a “normalidade social” era representada por alguns padrões muito fixos, engessados mesmo, fugir a eles era arriscar-se a estar fora de um ente poderoso, que não permitia muita margem de contestação, chamado “bom gosto”. Muito mais ontem que hoje, o significado se referia a uma qualidade do artista: selecionar “bons” caracteres estéticos que, somados, atestariam a boa qualidade de sua obra. 

O processo de seleção desta e daquela característica não era algo fortuito, nem a capacidade de selecionar bem era soprada pelas musas: o artista faz escolhas dentro de um conjunto de características consideradas positivas pelas classes sociais média e alta, além de uma intelectualidade e imprensa a elas ligadas, todas representantes do status quo. Esse o motivo pelo qual os protagonistas de romances e contos serem, majoritariamente, homens brancos, heterossexuais e de classe média, reproduzindo valores desse nicho social. A presença de personagens distintos desse padrão vinha (e ainda vem) carregados de negatividade explícita ou implícita, em maior ou menor grau. Em ambos os casos, ocorre o reforço do padrão considerado positivo.

Hoje, como ontem, manifesta-se na literatura de “bom gosto” o silenciamento quanto aos valores de sujeitos sociais postos à margem ou a menção negativa desses mesmos valores, ainda que haja forte oposição na sociedade e até na própria literatura, a depender da orientação estética. Por exemplo, entre os leitores com mais de quarenta anos (mas não apenas neles), conforme a classe social, é comum uma nítida má vontade em relação à obra de Jorge Amado pelo fato de ele abordar positivamente o candomblé, tido por grande “mau gosto” pois, na visão do cristianismo professado pela elite, opõe-se ao “legítimo” sagrado, ou seja, o ocidental. É claro, os motivos postos na mesa sempre são outros que não a religião afro-brasileira, mas basta escarafunchar um pouco os argumentos da pessoa e o motivo real vem à tona. 

O “contra-ataque” se intensificou há poucas décadas, com algumas excelentes obras escritas por autores (as) negros (as), em sua maioria abordando de algum modo a negritude, a exemplo de Eliana Alves Cruz (O crime do Cais do Valongo), e LGBTQIA+, tratando ou não da questão de gênero. Além da origem social de escritores e escritoras, também é importante destacar o aumento de personagens negros e LGBTQIA+, sem que haja uma abordagem negativa deles, fruto evidente das mudanças nos padrões estéticos. 

 Essa mudança reflete o movimento das placas tectônicas de nossa sociedade, umbilicalmente racista e homofóbica porque sua base está fincada no patriarcalismo. E por se tratar de um parto difícil, que as camadas privilegiadas não desejam ver acontecer, há fortes reações. Do preconceito mais evidente aos disfarces perpetrados pela expressão “bom gosto”. Os fóruns que os transmitem são muitos, do jornalismo cultural ao bate-boca das redes sociais, essa estrutura que só na aparência pode parecer uma conversa inócua: serve muito bem para alimentar preconceitos. 

Apesar de vivermos sob um regime que aprecia a morte e, portanto, desvaloriza a cultura, sobretudo a advinda das camadas periféricas, forma-se na literatura brasileira, a pouco e pouco, uma estética no interior da qual o conceito de bom gosto diverge do citado no início deste artigo. E nem poderia ser de outra maneira: no fundo, todo autor fala do seu quintal e de si, ou seja, do que conhece. Logo, autores periféricos não vão tratar da realidade da classe média ou de um mundo idealizado pelo status quo: seu objeto narrativo é o mundo onde vivem ou de onde vieram. Contribui muito para isso o desendeusamento do escritor: descobriu-se finalmente que o fazer literário não é exclusividade de uma elite social. 

Nesse universo narrativo, deixa de fazer parte do “bom gosto” a filigrana estilosa, o bordado linguístico que transmite valores e preconceitos das classes média e alta (disfarçadamente ou não) e passa a fazer parte dele a ser a escolha de situações e personagens que representem a realidade periférica, no mais das vezes, com uma linguagem pouco carregada no figurativo. Nesse sentido, declina-se de preceitos românticos e se valoriza o realístico com um discurso que, em diferentes graus de intensidade, opõe-se à estrutura que criou e nutre as exclusões sociais. 

Aqui, um detalhe para o qual é importante atentar-se: ambos os “bons gostos” são discursos de classe, em alguma medida. A diferença é que o primeiro é, quase sempre, uma coisa disfarçada, a exemplo da contística de Rubem Fonseca, ao passo que o segundo costuma ser bem mais explícito, a exemplo de Contos negreiros, de Marcelino Freire. 

Outra diferença fundamental é que o primeiro tipo de “bom gosto” está naturalizado na sociedade, e o segundo não, por ser o contradiscurso, a oposição que pretende, um dia, naturalizar-se. A naturalização faz com que o leitor mais desatento não perceba haver na trama valores que dialogam amavelmente com o status quo, ao passo que a não naturalização faz com que muitos sopesem a literatura periférica como artefato ideológico, desconsiderando que a literatura do “bom gosto oficial” também o é, e muito fortemente. Se pegarmos, por exemplo, a obra-prima de Raduan Nassar, Lavoura arcaica, é possível enxergar na trama personagens que claramente se colocam a favor do conservadorismo social em todos os níveis. Apesar disso, é raro ver alguém reclamar do texto por entendê-lo ideológico. 

O novo “bom gosto”, por inevitável, construirá seu cânone, processo que já está em curso. Não acredito em um cânon completamente à parte do que já existe, mas uma questão se coloca de imediato: até que ponto o novo “bom gosto” cederá ao velho para subir no pedestal, uma vez que as luzes da ribalta pertencem às forças sociais que construíram o velho “bom gosto”? Ainda que seja um cânone completamente distinto, sem nenhum ponto de contato — o que me parece utópico — ele existirá dentro de uma estrutura social já estabelecida, com suas instituições.

A menos, é claro que junto com o novo cânone venha uma revolução cultural e política. Mas aí são outros quinhentos...


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