Coluna Asas #24 - Um Retrato de Distúrbios Psicológicos em quatro HQs - (Fil Felix)


Um tema bastante frequente nas histórias em quadrinhos são dos distúrbios psicológicos, desde os mais leves, passando pela própria loucura até outras doenças mentais. O ambiente psiquiátrico também é protagonista ou coadjuvante em muitas histórias. Peguemos, por exemplo, o Batman: praticamente toda sua galeria de vilões possui alguma questão psicológica, como o Duas Caras (dupla personalidade) e Charada (transtorno obsessivo-compulsivo), entre muitos outros que perderam o contato com a realidade, surgindo também dentro dessa mitologia o Asilo Arkham, uma espécie de prisão especial para os criminalmente insanos. O mutante Legião dos X-Men também é conhecido por suas múltiplas personalidades, cada qual dominando seu corpo por vez e desbloqueando um poder diferente. Autores como o Neil Gaiman deu à loucura uma personagem muito interessante: a Delírio dos Perpétuos, que representa o próprio caos e a loucura no universo da série Sandman.

É possível dividir o uso da loucura nos quadrinhos (ou até na literatura de um modo geral) em dois grandes grupos genéricos, sendo um como ferramenta para desenvolver uma trama voltada ao psicodélico, o complexo e uma viagem pelo inconsciente, quase como uma explosão mental e visual; enquanto a segunda forma é uma maneira de se aprofundar na mente de certas personagens, justificando ou apresentando os efeitos psicológicos e/ ou psicóticos dentro de uma sociedade como a nossa. Cada autor, conforme suas intenções, vai diluindo essas duas grandes formas em tantas outras, abordando essa ou aquela característica. Separei para esse artigo quatro HQs que conversam ou retratam a loucura de diferentes formas, da mais palpável àquela mais surreal (que particularmente gosto mais!), comentando certos aspectos de cada uma.


Múltiplas Personalidades em “Cavaleiro da Lua

Marc Spector combate o crime como o herói Cavaleiro da Lua, um vigilante noturno com uniforme branco e armas que remetem ao formato de uma meia lua. Apesar de não possuir nenhum superpoder, algumas de suas habilidades foram “presentes” de Khonshu, deus egípcio da lua, que também funcionam como uma espécie de maldição. Criado originalmente em 1975, Spector foi desenvolvendo novas personalidades para auxiliar em suas investigações: Steven Grant, um milionário e filantropo para acessar a alta sociedade; e Jake Lockley, um taxista com contatos nas ruas. Com o passar do tempo, tais personalidades ganharam mais independência uma da outra, ao ponto de Spector ter que lutar ou conversar com cada uma delas. Em Bem-vindo ao Novo Egito, primeiro arco da série Cavaleiro da Lua escrita pelo Jeff Lemire e com os desenhos de Greg Smallwood (publicada originalmente em 2016), vemos o momento em que a mente de Spector se desfragmenta ainda mais.

Acordando num manicômio e sem muitas recordações, além de não saber como foi parar lá, Spector precisa lidar com o fato de ser um paciente no local e de que seus amigos (e inimigos) também estão presentes, porém com aparência e personalidades diferentes. Tudo surge quase como um delírio, cruzando com aspectos da mitologia egípcia. Nesse contexto, a figura do Cavaleiro da Lua é um sonho que Spector tem diariamente. Aos poucos ele vai se dando conta de que há alguma coisa errada, o próprio Khonshu entra constantemente em contato com ele, dizendo que precisa fugir dessa loucura, precisa olhar além. E vamos percebendo que a doutora, por exemplo, possui uma cabeça de crocodilo em alusão ao deus Ammut, Anubis aparece como um ajudante e até mesmo uma pirâmide gigante emerge em Nova York. Tudo muito psicodélico, em que os limites entre a loucura e a sanidade ficam muito tênues, sem que o leitor saiba onde começa uma personalidade de Spector e onde termina outra, o que é real e o que é delírio de sua mente, num excelente jogo de metalinguagem. Além de abordar essa questão das múltiplas personalidades, o autor Jeff Lemire trás também todo o imaginário em torno dos manicômios, como enfermeiros sinistros, terapia de choque e camisas de força.


Loucura em “Shade, o Homem-Mutável

 Um outro quadrinho que aborda de maneira bem visual a loucura é Shade, o Homem-Mutável, criado originalmente em 1977, mas que ganhou uma reformulação em 1990 pelas mãos do escritor Peter Milligan, se tornando um clássico cult com o passar dos anos. O primeiro arco dessa nova versão, a história O Grito Americano, apresenta o alienígena Rac Shade da dimensão Meta, enviado à Terra para impedir o fluxo crescente de Loucura. Porém Rac encarna no corpo de um serial killer procurado pela polícia e, nesse contexto, precisa encontrar alguém que acredite em sua história e o ajude a parar a Loucura, evitando que o caos domine tanto a Terra quanto Meta. E quando falamos na “loucura”, ela é algo bastante sólido na história, capaz de deformar a realidade e criar monstros do imaginário das pessoas, trazendo à tona seus maiores medos. Chris Bachalo é o desenhista principal do arco, reforçando toda a estética surreal e psicodélica associada à essa série, criando toda uma identidade visual. Sem contar nas capas desenhadas por Brendan McCarthy, que são um espetáculo à parte.

 Sou suspeito pra falar (pois o Milligan é um dos meus autores preferidos), mas ele construiu uma história genial em que aborda a loucura a partir de neuroses dos norte-americanos. A fonte de toda a loucura, que tem seu foco nos EUA, é O Grito Americano: sua própria personificação. Ela externaliza a neurose e fixação, particularmente, de dois cidadãos: um que transforma Hollywood num cenário de filmes trash de terror; e outro que é fissurado no assassinato do presidente JFK. A partir desses dois pontos, Milligan explora e também critica questões como o nacionalismo norte-americano, o cinema, a histeria generalizada, as teorias da conspiração e cria até mesmo um “Estados Mentais da América”. Um dos pontos altos da trama é quando brota da terra uma cabeça gigante, a “Esfinge Kennedy”, uma metáfora ao próprio EUA que, assim como a esfinge egípcia, indaga quem cruza seu caminho com um enigma, mas dessa vez com uma pergunta mais contemporânea: “quem assassinou JFK?”. E ela consome aqueles que errarem. Abordando a própria loucura a partir de temas bastante atuais, como a questão da paranoia e das conspirações, considero esse primeiro arco de Shade, o Homem Mutável uma leitura essencial para os fãs do gênero ou para os escritores que desejam navegar por essas águas do inconsciente e do surreal, mas sem tirar os pés das problemáticas que cercam nossa sociedade.


Depressão em “The Li’l Depressed Boy

 Saindo um pouco da Marvel (Cavaleiro da Lua) e da DC (Shade), queria comentar sobre um quadrinho pouco conhecido chamado The Li’l Depressed Boy publicado em 2011 pela editora Image, com roteiro de S. Steven Struble e desenhos de Sina Grace. Em seu primeiro arco de histórias, Ela é fascinante, somos apresentados ao jovem LDB (de Li’l Depressed Boy, que em tradução livre seria algo como o “garotinho depressivo”), que tenta lidar com a monotonia do seu dia a dia, além de frustrações, angústias e solidão. De maneira muito inteligente, a HQ aborda o grande mal do século XXI: a depressão. Começando pela imagem de LDB, que é retratado como um boneco de estopa nos desenhos, contrastando com as figuras humanas que o rodeiam. Foi uma escolha interessante por torná-lo uma figura universal: por não possuir cor, traços definidos, corpo magro ou gordo, até mesmo a ausência de um nome (já que usa o apelido LDB); ele se transforma quase que num boneco. Com a exceção de que ele é um garoto, LDB poderia ser qualquer um de nós que esteja passando por momentos como os dele.

Em sua primeira trama, LDB conhece e se interessa por uma garota que é quase o seu oposto, sendo descolada e alternativa. E a partir de vários encontros e desencontros entre eles, LDB confronta seu lado mais recluso e tímido, se sentindo um peixe fora d’água nas festas, lidando com a rejeição, a frustração, ser ou não ser correspondido, decepções, sonhos e desejos. Temas quase que universais, mas que ganham destaque pela maneira como são abordados, sem se tornar uma série extremamente pra baixo (ela é até cômica em muitas situações), e também não é extremamente visual como nos exemplos anteriores, sendo uma série bastante sóbria, atual e única ao lidar com a depressão.



Insanidade em “A Piada Mortal

 Um dos vilões mais icônicos e complexos dos quadrinhos sem dúvidas é o Coringa, o grande arqui-inimigo do Batman. Criado em 1940, sua origem foi contada e recontada de diversas maneiras, chegando ao ponto de que há mais de um Coringa no universo da DC. Sua origem clássica é a do criminoso Capuz Vermelho que, ao fugir do Batman, se joga num tonel de produtos químicos e tem todo o seu corpo alterado por eles, ganhando a pele branca, os cabelos verdes e o sorriso no rosto, enlouquecendo no processo. Em outras histórias há algumas modificações, que vão dando maior ou menor complexidade à sua história de origem. De qualquer forma, o Coringa se tornou o “palhaço do crime” em Gotham, um gênio do crime com personalidade instável, além de um psicopata de humor sádico. Uma de suas armas mais características é o “gás do riso”, um gás tóxico que mata aquele que o inala, deixando a pele do rosto enrijecida no formato de um enorme sorriso histérico. Há uma teoria que diz que nenhum psiquiatra ou psicólogo, fictício ou não, poderia dar um laudo preciso sobre o Coringa. A Dra. Harleen Quinzel, por exemplo, ficou responsável pelo Coringa enquanto ele esteve preso em Arkham, porém acabou sendo seduzido por ele e, consequentemente, levada à loucura e se transformando na também criminosa Arlequina.

 Apesar disso, há um consenso que o define com uma palavra: insano. A insanidade é o maior diferencial do Coringa, que o coloca como um dos maiores vilões dos quadrinhos, sendo abordada e aprofundada a cada autor que trabalha com o personagem. Destaque para A Piada Mortal, graphic novel publicada em 1988 e escrita por Alan Moore

com os desenhos de Brian Bolland, um clássico que consolidou o vilão como uma figura capaz de extremos. Na trama, o Coringa foge do Arkham e assassina Barbara Gordon, tirando fotos de todo o processo. Na sequência ele sequestra o Comissário Gordon, pai de Barbara, e o faz passear (totalmente nu) por um parque de diversões dominado pelo caos. Numa das sequências mais emblemáticas, o Comissário é obrigado a entrar num “trem fantasma” onde há televisores exibindo fotos de sua filha, Barbara, no momento em que foi assassinada pelo Coringa: seminua, sangrando e com um tiro na barriga. Fica nas entrelinhas, inclusive, que o Coringa chegou a estuprá-la. Esses pontos fazem com que A Piada Mortal seja um quadrinho polêmico e chocante até mesmo para os dias de hoje, passados mais de 30 anos desde seu lançamento. E a principal questão levantada na HQ, que o Coringa tenta provar ao Batman, é que basta um dia ruim para tornar qualquer pessoa sã em insana, capaz de fazer as piores coisas.

Com exceção de The Li’l Depressed Boy, todas as outras três histórias comentadas aqui foram publicadas em encadernados pela editora Panini no Brasil. Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre cada uma, pode conferir as resenhas que fiz delas em meu blog:


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