Coluna Asas #16 - Finster pergunta: para que e para quem criamos? (Fil Felix)

 




Sou muito fã das histórias em quadrinhos, então sempre que tenho a oportunidade de escrever sobre literatura, acabo levantando a bandeira das HQs. Principalmente porque no meio literário ainda há muito preconceito com o formato (até mesmo no meio artístico, já ouvi que as HQs é uma “arte menor”). Mas não gosto de ficar nas figurinhas carimbadas ou os quadrinhos mais alternativos e cult, que ganharam certo passe de aceitação. Vira e mexe gosto de trazer algo que li recentemente, alguma história comercial ou puramente de entretenimento (ao olhar dos puritanos), mas que trazem mensagens ou questões para discussão interessantíssimas.

É o caso das histórias de super-heróis, o gênero mais explorado das HQs e que representa boa parte do mercado. Geralmente são tidas como histórias bobas, repetitivas (afinal de contas, heróis como Batman, Superman e Homem-Aranha estão aí há mais de meio século), apelativas ou, pra ser mais contemporâneo, muitas servem apenas como material de apoio das adaptações cinematográficas (que por si só já rende outro tanto de discussão). Não que isso não seja real, pois há muita coisa caça-níquel por aí (e mesmo elas tem seu valor como entretenimento, quem nunca quis pegar um gibi e ver uma boa e velha luta do herói contra o vilão, do bem contra o mal?), mas as vezes esse preconceito com o gênero acaba afastando o leitor e segregando ainda mais o formato dos quadrinhos em relação aos formatos mais tradicionais da literatura e das artes visuais.

Recentemente li um arco de histórias da revista dos Power Rangers que, em meio às suas lutas entre rangers de uniformes coloridos e robôs gigantes lutando contra monstros espaciais também gigantes, uma personagem levantou uma questão muito boa sobre o processo de criação e sua finalidade. Basicamente debatendo sobre para quê e para quem criamos. E em tempos de redes sociais, likes e busca por aceitação e status, essa questão não poderia ser mais conveniente.

Geralmente, nós que trabalhamos com criação, seja escrevendo ou pintando, o fazemos por uma necessidade maior que a de aceitação. Mas não muda o fato de que queremos o melhor para nossa criação, queremos que nosso conto seja lido, que nossa arte seja apreciada. Não costumo acreditar muito na ideia romântica do escritor que prefere guardar seus manuscritos no fundo da gaveta, destinados ao limbo, que a ser lido pelas pessoas e, melhor ainda, compreendido! E é exatamente sobre isso que Finster, vilão dos Power Rangers, comenta.

Para quem não conhece, em 1993 era lançado na TV a série Mighty Morphin Power Rangers, que trazia para o mercado ocidental o sucesso dos “tokusatsus”, gênero japonês de séries como Jiraya e Kamen Rider, por exemplo. A fórmula é meio batida em todos os tokusatsus de equipe: um esquadrão multicolorido que combate vilões espaciais. No caso dos Power Rangers, eram cinco heróis que foram escolhidos para defender a Terra dos avanços da vilã Rita Repulsa e seus monstros. Lutas entre robôs gigantes e vilões que também cresciam também é outro ponto bastante comum em séries do gênero. De 1993 pra cá a franquia Power Rangers continua fazendo sucesso, ganhando novas séries anualmente, com tramas e protagonistas diferentes. O que nos faz chegar em sua adaptação para os quadrinhos, que cito aqui no artigo, que aborda e aprofunda o mesmo universo da primeira série.



Finster é um dos principais servos de Rita Repulsa, com o dom de moldar e dar a vida a bonecos de massa. Finster cria, então, quase toda a galeria de vilões monstruosos dos Rangers. E, de alguma maneira, ele se assemelha muito a nós, escritores. No Vol. 6 da revista Mighty Morphin Power Ranger (que reúne as edições #21-24, de 2018) escrito pelo Kyle Higgins, Finster é colocado numa prisão especial da qual aparentemente não conseguirá escapar. Então Saba, o sabre consciente do Ranger Branco, tenta barganhar com ele: em troca de abandonar sua lealdade à Rita e retirar seus monstros da Terra, ele poderá criar e trazer à vida tudo que puder imaginar e livremente dentro dessa prisão; num diálogo muito interessante:

"Estou aqui para oferecer uma proposta, para um artista do seu calibre. Uma proposta que pode salvar a sua vida, assim como permitir que você faça o que realmente ama: criar. Aqui, você pode criar - realmente - tudo que você desejar", diz Saba.
"Diga-me, sabre, quão boa é a 'criação' se ela não pode ser experimentada?", responde Finster.
"Eu pensei que 'arte' era puramente sobre o ato. Não a plateia", rebate Saba.

Claro que Saba está tentando impedir o vilão de cometer outras atrocidades, enquanto Finster também quer ver seus monstros em ação destruindo e matando o que vê pela frente. Mas o questionamento ainda é válido. Muitos de nós desejamos o tão sonhado “viver da minha arte”, o que quase nunca é possível, precisando que a gente enfrente outros trabalhos para dar vazão à nossa necessidade de criar. Ou pensamos que seria ótimo se não precisássemos pensar nos boletos da vida, que pudéssemos nos dedicar 100% à criação, como Saba oferece à Finster. Mas e a plateia? O diálogo continua:

"Talvez para alguns. Mas eu diria que eles não são particularmente bons. Se você não liberar algumas criações para o público… como você saberá o seu verdadeiro valor? Arte é sobre a relação entre o criador e o público. É sobre a reação extraída da criação. De muitas formas, a reação é a criação", diz Finster.

Ao que ele finaliza:

"Criar simplesmente por criar… é chato."

Além de um diálogo super interessante e de um lugar que não imaginaria (afinal de contas, leio Power Rangers pelos robôs, não é mesmo?), me peguei refletindo sobre isso. O que seria da arte sem o público? O que seria de um texto sem o leitor? E não precisamos ir longe, ainda mais nessa era em que fazemos de tudo pra ganhar mais likes, mais visualizações e comentários. Coisas como postar a foto de um livro que estamos ou iremos ler, muitas vezes, se torna mais importante que o próprio ato de o ler (que às vezes é deixado em segundo plano e acabamos por esquecer).

Há uma teoria do Nicolas Bourriaud da qual gosto muito, a da “estética relacional”, em que ele explora a questão da obra se complementar na visão de quem a consome. Que a obra, por si só, é só uma parte do todo. De certa maneira, a interpretação e a leitura do público é o que traz à vida tudo o que podemos criar, do escritor e artista incompreendido ao narcisista. Todos compartilham, também, dessa necessidade.

E voltamos à nossa questão primordial: já refletiu sobre para quê (sua necessidade) e para quem (sua plateia) criamos? Em tempos tão narcísicos de tudo, da pedância em exibir o próprio conhecimento, de se levar tudo muito a sério à supervalorização do corpo, como agiríamos sem as redes sociais? De que lado você ficaria, de Saba ou do Finster?

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